Textos da Revista VIDA SIMPLES



Lições de humildade com Sócrates
Aprenda uma lição de humildade com Sócrates, o pensador que tinha consciência de sua própria ignorância
Em 14/06/2011
José Francisco Botelho
A trajetória de Sócrates é um cruzada contra a falsa sabedoria. Sempre amigável, o filósofo demonstrava o quanto ainda sabemos tão pouco dos mistérios da vida. Como Buda e Cristo, que não deixaram escritos, Sócrates é conhecido hoje pelos escritos de seus discípulos. Grande parte do que sabemos sobre ele está contido na obra de Platão - nos textos conhecidos como Diálogos, retrato das incansáveis discussões filosóficas entabuladas pelo mestre. Para compreendê-las, é preciso conhecer o mundo em que Sócrates viveu e filosofou - a Grécia do século 5 a.C.
O sistema de governo dos atenienses, a democracia, estava vigente desde o século 6 a.C. A cada mês, os cidadãos com mais de 30 anos se reuniam em uma grande Assembleia para debater leis e escolher magistrados. Cada um tinha o direito de defender suas ideias em discursos públicos. Por isso, a arte de falar bem - para convencer ou para dissuadir - se tornou uma das ocupações favoritas do povo de Atenas.
A arte do diálogo
É nesse contexto que surgem os sofistas - trupe de intelectuais itinerantes que, em troca de remunerações graúdas, ensinavam a retórica aos jovens com ambições políticas. Até então, a filosofia grega se ocupava principalmente de assuntos cosmológicos, como a natureza dos astros e a origem do universo. Os sofistas mudaram essa equação: para eles, o objeto da reflexão filosófica era o próprio homem. Outra grande inovação introduzida por eles foi o uso do diálogo como método de reflexão e persuasão. Eles preferiam exibir suas habilidades lógicas em debates cara a cara, em que dois ou mais interlocutores se digladiavam na defesa de ideias opostas.
Antes de se tornar célebre como filósofo, Sócrates já era famoso como o maior esquisitão de Atenas. Sua principal ocupação era sondar a alma humana, e pouco tempo lhe restava para questões rotineiras, como ganhar a vida. Costumava andar pelas ruas de Atenas com roupas puídas e sempre perdido em reflexões. Com o tempo, Sócrates compreendeu que o excesso de truques retóricos dos sofistas servia para ornamentar mentes vazias, e decidiu que caberia a ele fustigar a soberba de seus contemporâneos.
Saber e não saber
E, assim, ele chegou à conclusão que mudaria a história do pensamento: a de que o verdadeiro sábio é aquele que tem consciência da própria ignorância. A partir daí, Sócrates começou uma cruzada pessoal contra a falsa sabedoria humana. Em suas próprias palavras, ele se tornou um "vagabundo loquaz" - movido pelo célebre bordão que o legou à posteridade: "Só sei que nada sei".
Ele geralmente começava seus debates com perguntas diretas sobre temas elementares: "O que é o Amor?" "O que é a Virtude?" "O que é a Mentira?" Em seguida, destrinchava as respostas que lhe eram dadas, questionando o significado de cada palavra. Assim, o pensador demonstrava uma verdade que até hoje continua universal: na maior parte do tempo, a grande maioria das pessoas não sabe do que está falando.
Para muitos ouvintes, o efeito do diálogo socrático era a catarse - uma experiência de purificação espiritual em que as portas do autoconhecimento se escancaram. Mas tamanha independência de espírito pode ser algo arriscado - tanto na Antiguidade quanto hoje em dia. Em 399 a.C., seus desafetos conseguiram levar Sócrates a julgamento. Condenado com a pena de morte, ele retrucou: "Ninguém sabe o que é a morte. Talvez seja, para o homem, o maior dos bens. Mas todos fogem dela como se fosse o maior dos males. Haverá ignorância maior do que essa - a de pensar saber-se o que não se sabe?"
O "vagabundo loquaz"foi a primeira figura célebre na história do pensamento a morrer por suas ideias. Sua modéstia, numa época de vaidade intelectual, é um aviso aos navegantes: por mais poder que uma civilização tenha, o fato é que, no fundo, continuamos todos humanamente estúpidos. Pensar por si mesmo e a si mesmo num diálogo com o outro: eis a lição aparentemente simples, mas hoje tão esquecida, legada por uma das figuras mais intrigantes na história da humanidade.
LIVRO O Julgamento de Sócrates, I.F. Stone, Companhia de Bolso Apologia de Sócrates, Platão, L&PM Pocket.
Entenda por que somos responsáveis por nossas escolhas
O que você está fazendo da sua vida? Eugenio Mussak explica porque, afinal, somos responsáveis pelos caminhos que escolhemos
Publicado em 02/03/2012
Reportagem: Eugenio Mussak
Era o começo dos anos 1980. Eu, muito jovem, já tinha conseguido alguma independência e gostava de pensar que mandava em meu próprio nariz. Naquelas férias, viajei com amigos para os Estados Unidos e, uma vez lá, propus que visitássemos um dos símbolos do capitalismo e do american way of life: Las Vegas. Saímos de carro de Los Angeles para uma viagem de cerca de quatro horas, em que se cruza a Califórnia por uma estrada perfeita, passando por pequenos povoados, inclusive a cidade fantasma de Calico, onde se espera ver um duelo na frente do saloon. De repente, após cruzar o deserto de Mojave, estamos em Nevada e, quando menos se espera, já se avistam as torres dos hotéis da Strip, no meio do nada. Las Vegas pulsa com luzes, pecados, risos, esperanças e desesperos. Em 2011, completou 100 anos de existência essa cidade artificial, construída no deserto do sonho norte-americano, para ser a capital dos prazeres. Mas o que estaria eu, que não gosto de jogar nem palito, fazendo naquele lugar? Meus amigos não sabiam, mas o que eu queria mesmo não era ficar apostando fichas na mesa de black jack, e sim assistir a um show no lendário Golden Nugget, porque Las Vegas não é feita só de jogos, mas também de grandes espetáculos. O artista? Ele. A Voz. Frank Sinatra. E Sinatra não decepcionou. Cantou Fly Me to the Moon, Strangers in the Night, New York, New York, fazendo o imenso teatro quase levitar; e de repente atacou uma música que mexeu comigo de um jeito que eu não esperava: My Way. "I've lived a life that's full/ I traveled each and every highway/ And more, much more than this/ I did it my way"... A música, adaptada por Paul Anka da francesa Comme d'Habitude, é o desabafo de um homem que confessa que viveu intensamente, amou, viajou, riu, chorou e sabe que, em alguns momentos, mordeu mais do que podia mastigar. Mas de nada se arrepende, pois tem a consciência de que, tudo que fez, fez porque quis e, acima de tudo, fez como quis. "Fiz do meu jeito", insiste - I did it my way. O impacto sobre meu ser foi forte porque eu tinha duas dúvidas que ficaram mais fortes depois que eu refleti sobre a música. A primeira é se eu estava conduzindo minha vida do jeito que eu queria. A segunda é se, afinal, eu sabia que jeito era esse.
Autonomia e significado
Pelo menos uma coisa eu sabia: eu queria conduzir minha vida com base em minhas verdades (seja lá o que for uma verdade), e não baseado na dos outros, o que é uma empreitada e tanto.
Nietzsche costumava perguntar: "Você viveu sua vida? Ou foi vivido por ela? Escolheu-a, ou ela escolheu você? Amou-a ou a lamentou?" E, quando lhe pediam conselhos, o alemão dizia: "Não posso lhe ensinar como viver de forma diferente, pois, se o fizesse, você continuaria vivendo o projeto de outrem, e não o seu próprio". Ter um projeto próprio é uma busca demasiadamente humana. Mas... como? A quantidade de influências que recebemos ao longo de nossa vida, com pessoas procurando nos moldar e nos transformar em uma espécie de replicantes, é imensa. E não há erro aparente nisso, pois qual é o pai que não quer o bem para a vida de seu filho e, nessa busca, acaba influenciando suas escolhas e seus caminhos? Mas um pai não pode viver de novo sua vida por meio de seu filho. Ele pode orientar, alertar, ensinar, mas não viver a vida do filho, ou pelo filho. Dar raízes e asas, esse é o grande desafio da paternidade. Mas não é fácil, eu sei. É difícil lembrar que cada um nasce para viver sua própria vida. E os professores? Qual o professor que não cumpre sua missão de educar mostrando qual seria a boa trilha a seguir pela vida? Educar é influenciar, não tem jeito. Mas educar é, ou deveria ser, acima de tudo, ensinar a pensar, e o pensamento com qualidade conduz, ou deveria conduzir, a duas lições que são as mais belas que um jovem pode aprender: a autonomia e o significado. Ser autônomo significa fazer suas próprias escolhas e assumir responsabilidade por elas. Não quer dizer, cuidado, que se possa fazer o que se quer, atender a seus desejos desconsiderando totalmente as expectativas dos outros, do mundo. Autonomia é razão lúcida, equilíbrio, e pressupõe responsabilidade, maturidade, disposição para assumir seu destino. A razão emancipada nega a tutelagem e a subordinação. A razão esclarecida é a razão absoluta da autodeterminação. E ter significado quer dizer estar conectado com uma atividade que faça sentido, que nos dê a certeza de que estamos no caminho certo, fazendo o que gostamos e que aquilo que fazemos torna o mundo melhor. Mesmo sem saber, à medida que amadurecemos, buscamos, às vezes desesperadamente, essas duas grandes conquistas: a autonomia e o significado. Autonomia para gerir sua própria vida e significado para sentir prazer em viver. Enquanto a autonomia garante minha liberdade de escolher, o significado me dá a certeza de que estou vivendo a vida que eu quero viver. Do meu jeito. Naturalmente, o jovem é levado a providenciar, em primeiro lugar, a autonomia. Pagar suas contas, garantir sua sobrevivência, não depender mais de seus pais nem de ninguém. E isso está certo, pois quem continua dependente jamais caminhará com suas próprias pernas. O problema é que às vezes, na pressa pela autonomia, acabamos presos a um sistema que não nos faz felizes. E é nessa armadilha que se encontra o grande inimigo do my way. Conheci, recentemente, um jovem nem tão jovem assim, beirando os 40, que desabafou comigo, dizendo: "Eu queria ser músico, mas virei contabilista. Eu queria viajar pelo mundo, mas nunca saí da cidade. Eu queria ter meu próprio negócio, mas fui trabalhar em um banco". Em primeiro lugar, é necessário dizer que não há nada de errado em estudar contabilidade, morar sempre na mesma cidade e trabalhar em um banco. Mas tem que ser por escolha. Conheço contabilistas felizes e músicos angustiados. Funcionários serenos e empreendedores estressados. Há de tudo. Em todos os caminhos. O que fica claro, estampado no rosto, transbordante pelo olhar, é a satisfação de estar fazendo o que se escolheu fazer.
O preço a pagar
Bem-vindo ao mundo real, em que o caminho é representado por um dilema: sem autonomia não posso lutar por aquilo que tem significado para mim, e sem trabalhar com significado dificilmente atingirei a verdadeira autonomia. Eu percebi isso analisando minha própria história e a de outros. E também observando a vida, lendo livros e poemas, apreciando arte. Na estação Montgomery do metrô de Bruxelas, por exemplo, não é possível não se emocionar com a decoração feita por um dos mais importantes artistas belgas, Jean-Michel Folon. Pode ser que seja só comigo, mas Folon me faz refletir sobre meu caminho e meu jeito de segui-lo. Em seu quadro chamado Foule II, pessoas caminham como se estivessem hipnotizadas, seguindo por uma espécie de corredor, com comportamento de manada, e algumas setas sinalizam os caminhos que devem seguir. Entretanto, em suas cabeças, grandes olhos brilham como luminosos, na expectativa de encontrarem seus próprios caminhos. No Yes to Freedom, um pássaro senta sobre a mão e aponta para o coração de um homem que tem uma gaiola na cabeça. No Un Monde, um menino senta-se pensativo e há um mundo em sua cabeça, querendo transbordar. Folon foi, para mim, o Sinatra dos pincéis. Ambos me fizeram pensar sobre as imensas possibilidades dos campos da vida e sobre minha responsabilidade em construir meu caminho nessa paisagem. A história de um homem depende dele mesmo e depende também do mundo. Há os que creditam a construção de sua história apenas ao mundo. Estes são deterministas. Há os que acreditam só em si mesmos. Estes são os possibilistas. E há os que confiam em seu discernimento para seguir a vida, mas não desconsideram o efeito do mundo, do acaso. Estes são os estrategistas. Ser como se quer ser. Ousar sonhar seu próprio sonho. Ouvir os outros, mas depender apenas de si mesmo para tomar as decisões. Estas são as qualidades daqueles que dizem que vivem sua própria vida, e não as dos outros. Como diz Renato Teixeira em seu Tocando em Frente, que compôs com Almir Sater: "Cada um de nós compõe a sua história, e cada ser em si carrega o do de ser capaz, e ser feliz". Ao meu amigo contabilista eu quero dizer que nós precisamos que ele faça com que este mundo tenha o mínimo de organização. Imagine este planeta só com artistas e poetas. Quem colocaria ordem na casa? Por favor, organize o mundo, aplique as leis, crie estratégias de fluxo de caixa, faça as colunas de débitos e créditos fazerem as pazes entre si. Sem isso, o caos tomaria conta e a barbárie voltaria. Seja um contabilista, mas seja o contabilista que você quer ser. Do seu jeito. Aliás, quando se fala em artes e artistas, eu me pergunto: quem é mais artista? Aquele que faz arte ou aquele que faz o que não é arte parecer arte? Cada vez mais aposto no segundo. Trata-se da arte de quem desenvolve a capacidade de fazer de seu jeito, por isso faz bem. Com autonomia e com significado.
A ansiedade das escolhas
Optar por isto ou aquilo faz parte da nossa rotina. Saber conviver com essas decisões pode ser libertador. Confira a reflexão!
Publicado em 23/01/2012
Eugenio Mussak
Como escolher entre dois conjuntos de valores tão importantes?
Ilustração: Nik / Reprodução revista VIDA SIMPLES
"OK, então vamos esperar por sua escolha até amanhã de manhã. Pense bem antes de decidir."
A frase soou como uma ameaça. Eu tinha que decidir e não podia negar essa responsabilidade, já que corria o risco de perder tudo. Mas a escolha não era simples, pois, no fundo eu queria os dois. Um representava a liberdade, a aventura, a alegria de viver. O outro significava a sabedoria, o conhecimento, o futuro. Como escolher entre dois conjuntos de valores tão importantes? Como optar por um e abrir mão do outro que eu também queria tanto? Por que o destino estava fazendo isso comigo? Ó mundo cruel...
Mas não teve jeito, pois eu sabia que, se demorasse para decidir, ou não mostrasse firmeza em minha conclusão, não seria considerado maduro o suficiente para merecer nenhum dos dois. Acabaria tendo que me contentar com algum prêmio de consolação, e isso seria a pior coisa que poderia me acontecer naquela fase da vida. Então, armado de uma convicção artificial, comuniquei minha decisão:
- Então está bem, fico com a bicicleta! - e abri mão da enciclopédia.
Estávamos em véspera de Natal e eu tinha 11 anos. O que aconteceu naquela oportunidade foi uma espécie de iniciação à vida, que nada mais é que uma sucessão de escolhas. Parece que a única escolha que não fizemos foi a de nascer, porque daí para a frente, passada a primeira infância, começa nossa preparação para sermos responsáveis. Tem início o desenvolvimento de algo chamado "consciência", que, em última análise, é a autonomia para cuidar do destino, escolhendo os caminhos da vida. Amadurecer, descobri, é assumir a responsabilidade por suas escolhas.
Eu queria muito aquela bicicleta. Qual é o garoto que não quer? Desejava sair por aí, com os colegas ou mesmo sozinho, deslocando-me com rapidez, sentindo o vento, conhecendo outros bairros da cidade. Mas também estava de olho na tal enciclopédia, que, para mim, era uma espécie de passaporte para o conhecimento. Com a bicicleta, poderia passear pela cidade - pensava -, e com a enciclopédia, poderia viajar pelo mundo.
Prevaleceu a liberdade do vento, não a das letras, como seria de esperar de alguém que mal encerrava a primeira década de vida. E aquela bicicleta me deu muita alegria, acredite. Nunca me arrependi da escolha, até porque mais tarde, em outro Natal, a enciclopédia veio, ainda que não tenha vindo o aparelho de som - outra escolha/troca.
A tirania do"ou"
Um dos personagens mais explorados pela literatura alemã é o de um homem que fez uma escolha perigosa: Fausto. Ele foi inspirado em uma pessoa real, o médico Johannes Georg Faust, que viveu entre 1480 e 1540 e que era também estudioso de alquimia e magia. Sempre insatisfeito com o conhecimento disponível, ansioso por saber mais, acabou por dar origem a Fausto, que teve inúmeras interpretações na literatura germânica, sendo que a que predomina é a do mais importante escritor alemão, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
A primeira parte da versão de Goethe foi publicada em 1806 e conta que Fausto, querendo superar os conhecimentos disponíveis na época, ambicioso pelo saber, acabou fazendo um pacto com um demônio, Mefistófeles. Durante 24 anos ele não envelheceria, experimentaria todos os prazeres e teria acesso a conhecimentos novos. Tudo isso em troca de sua alma, que passaria a ser posse do maléfico pela eternidade.
Fausto aceita, pois seu desejo de saber é superior a tudo. O que ele não contava é que se apaixonaria por Margarida e, ao se ver perto de seu prazo, vê-se também obrigado a abandoná-la. O mito fáustico, em todas as versões, joga com a ideia da perda como subproduto da escolha. E essa perda pode ser desesperante, como no caso do personagem, ou pode ser, em sua versão mais humana, no mínimo, a causa de grandes ansiedades.
A ansiedade é, sim, um dos males da modernidade. Não há pessoa que não relate que é acometida, eventualmente, por uma "crise de ansiedade", caracterizada pela sensação de dúvida, incerteza, desconforto. A pessoa ansiosa gostaria de não estar onde está, ou pelo menos gostaria de não estar vivendo a situação que lhe causa ansiedade - mas, por outro lado, sabe que não tem como evitar. Todos somos ansiosos, em graus maiores ou menores.
E a causa mais comum de geração de ansiedade atualmente é, como vimos, a necessidade de fazermos escolhas. Sim, pois a cada escolha você tem que sofrer com as renúncias que ela acarreta. Essa é a tragédia da escolha. O imperativo do "ou". Ou isto ou aquilo, os dois não dá, explica a vida - e a gente aceita com resignação.
Escolher é trocar
A língua inglesa tem uma expressão que define bem a ansiedade da escolha: trade-off. Sem tradução literal, trade-off significa escolha, mas também quer dizer troca. Em síntese, escolher significa trocar uma coisa por outra. Ao escolher a bicicleta, abri mão da enciclopédia. Foi uma troca e, convenhamos, a melhor que podia ter feito naquela ocasião. No ano seguinte, troquei um aparelho de som novinho pela coleção de livros que esperei por um ano. E por aí vai.
Trade-off é uma expressão muito usada nas empresas, e faz parte do planejamento estratégico. Os empresários e executivos sabem que sempre há um preço a pagar. Por resultados, terão que fazer investimentos. Se buscarem inovação, terão que admitir alguns erros. Se optarem por economizar, terão que reduzir os investimentos. Na economia do país, se a opção for pelo controle da inflação, sabe-se que a taxa de crescimento será menor. "Não há almoço grátis", dizem os economistas. Trata-se de um postulado da economia que lança mão da obviedade que não dá para, ao mesmo tempo, comer a refeição e ficar com o dinheiro.
Um dos melhores exemplos de trade-off estratégico é encontrado não na economia, mas no jogo de xadrez - e, nesse caso, pode receber o nome de gambito, que não é, portanto, apenas o codinome das pernas finas.
Nesse jogo, gambito é o sacrifício de uma peça em troca de alguma vantagem, que pode ser outra peça ou espaço, desguarnecimento do adversário, linhas diagonais ou simplesmente tempo. O outro jogador pode aceitar ou refutar a oferta, pois sabe que há uma intenção por trás, uma espécie de jogada oculta. O Gambito do Rei é uma jogada em que o jogador de peças brancas oferece um peão logo no início do jogo e, aparentemente, desprotege o rei, mas, na prática, obtém uma liberdade de ações bem maior a partir disso, ganhando o domínio que vem da iniciativa. Tanto essa jogada quanto o Gambito da Dama são estratégias de quem sabe jogar e não de iniciantes sem técnica nem equilíbrio emocional.
Na vida também é assim, mas é claro que há variações importantes. Todos os dias fazemos escolhas soft, cujos enganos não provocarão maiores consequências. Se você errar no prato no restaurante ou no filme na locadora, ou se escolher uma roupa leve num dia em que faz frio, tudo bem, a encrenca não é tão grande assim. O complicado é errar nas escolhas hard, como a profissão, os investimentos ou a pessoa com quem se casar e compartilhar a vida. Felizmente, fazemos mais escolhas soft do que hard neste passeio pela vida.
A possibilidade do "e"
Mas nem tudo está perdido. Disse Einstein que nós não podemos resolver um problema usando o mesmo estado mental que o criou. É necessário buscar novas possibilidades, aceitar a existência de caminhos não vistos no primeiro olhar. E, nessa busca, sempre podemos contar com a possibilidade do "e" em vez do "ou". A inclusão como alternativa à exclusão.
Nem sempre dá, mas não podemos descartar essa possibilidade, e até contar com ela. Aliás, há situações em que essa é a única saída. Voltando a falar dos economistas e dos pensadores no futuro da sociedade humana, há um tema que gera muita polêmica. Trata-se da disputa entre crescimento da economia e a sustentabilidade do planeta.
Os que pregam o crescimento econômico são acusados pelos ambientalistas de não se preocuparem com a sustentabilidade do planeta, e estes são chamados por aqueles de patrocinadores do atraso. Durma-se com um barulho desses. Felizmente existem cérebros atuantes, cientistas, estadistas, pensadores que afirmam ser possível promover desenvolvimento protegendo a natureza. Desenvolvimento com sustentabilidade. Geração de riqueza e preservação do meio ambiente.
Para isso, claro, temos que falar de coisas novas, como reflorestamento, reciclagem, eficiência, novos materiais, pesquisa pura e aplicada, consumo consciente. Novos modelos mentais. Como se vê, fazer a opção pelo "e" requer investimento, tempo e inteligência. É mais fácil escolher um, ignorar o outro e tentar dormir tranquilo.
A inclusão é a solução ideal, quando possível. Senão, é necessário escolher e arcar com todas as consequências que fazem parte do pacote. O direito de escolher é atributo do mundo livre, o que é muito bom, claro. Nos países totalitários, em que ditadores comandam tudo com mão de ferro, a população não tem que fazer muitas escolhas, porque o estado faz por elas.
Viver com liberdade aumenta a responsabilidade e a ansiedade, mas viver sem ela aumenta o sentimento de impotência e o resultado pode ser a tristeza e a depressão. Sinceramente, se esse é o preço, fico com a ansiedade. E viva a liberdade de escolha.
* Eugenio Mussak não se arrepende de ter optado pela bicicleta e não pela enciclopédia
Assuma suas culpas para ganhar liberdade e viver melhor
Assumir a culpa é um fator importante para se livrar da angústia das suas escolhas impensadas, seguir adiante e viver melhor
Publicado em 24/02/2011
Rafael Tonon
Livre-se as angústias assumindo suas culpas por atitudes impensadas
Em seu texto no qual descrevia o preceito do Iluminismo, o filósofo alemão Immanuel Kant dizia que o movimento baseado na razão era a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. Kant defendia que o homem está em estado de infância, porque não é capaz ou não quer dirigir a si mesmo. “Se eu tenho um livro que me faz as vezes de entendimento e se tenho um médico que decide por mim sobre meu regime, não preciso me preocupar”, escreveu o filósofo, para explicar esse comportamento transferidor de responsabilidade a que nós nos submetemos.
Transferir nossas responsabilidades é um comportamento normal, que todo mundo invariavelmente comete. Trata-se de uma tendência de autopreservação, um mecanismo de defesa a que nossa mente recorre quando a carga fica pesada. "Na medida em que projetamos sobre uma pessoa nossos impulsos inconscientes, diminuímos nossa ansiedade", explica a psicóloga Vera Chvatal, do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp.
Liberdade responsável
O filósofo Renato Janine Ribeiro questiona a relação liberdade e responsabilidade tal qual a conhecemos. Ele defende que a responsabilidade é que pressupõe a liberdade, não o contrário. "Só quando sou capaz de responder pelos meus atos é que eu tenho a liberdade para fazer minhas escolhas", afirma. Diante da nossa realidade e da responsabilidade que ela nos impõe é que somos livres para fazer outras escolhas, tomar novas decisões.

O primeiro passo para nos tornarmos livres é assumir quem somos. "Se eu negar o que eu sou, minha liberdade fica muito mais difícil. Afinal, você só consegue fazer escolhas a partir daquilo que você já é. E só é possível mudar quando assumirmos nossa condição", completa.
A culpa alheia
"A questão é que o alívio de transferir responsabilidades para os outros é ilusório", explica a escritora e filósofa americana Marietta McCarty, autora do livro How Philosophy Can Save Your Life ("Como a filosofia pode salvar sua vida, sem edição no Brasil). "Se a culpa é do outro, ela não me pertence, então não tenho nada a fazer a respeito", pensamos. Dessa forma, acabamos nos isentando não apenas da culpa, mas da capacidade de lidar com ela.

Essa isenção sobre nossos atos começa a se formar durante a infância. Quando nascemos, nossa família começa a nos passar a noção de responsabilidade a partir de valores pessoais, sociais, culturais e aprendemos a responder a uma autoridade superior que primeiramente serão os nossos pais. "Se esses valores não nos foram inculcados passaremos a atribuir a culpa de nossos atos aos outros", afirma a psicóloga Vera Chvatal.

É preciso, como defendia Kant, sair desse estado de infância e passar a assumir responsabilidades para termos uma vida mais plena. Porque o preço da inocência é mesmo a impotência. Isso pode eximi-la das conseqüências dos seus atos, mas ao mesmo tempo lhe tira o prazer de viver livremente.
LIVROS
Foi Apenas um Sonho, Richard Yates, Alfaguara
O Governo de Si e dos Outros, Michel Foucault, Martins Fontes
A Última Razão dos Reis, Renato Janine Ribeiro, Companhia das Letras
Qual a sua galinha dos ovos de ouro?
Não é certo que todo mundo vai chegar lá, mas só dá para saber tentando. Pare de usar a desculpa de que não nasceu mesmo para aquilo que você quer tanto fazer
texto Mariana Delfi ni
De um lado, Pelé, Mozart, Picasso. De outro, os candidatos numerados que se enfi leiram na frente dos estúdios de TV, esperando uma chance de mostrar suas múltiplas habilidades. Muita gente se pergunta sobre a lógica do talento: se existem mesmo aqueles gênios natos, distantes da nossa pequena realidade, ou se todo mundo (inclusive nós mesmos) abriga um notável em potencial dentro de si. “The answer, my friend, is blowing in the wind”: é ao vento que David Shenk compara o talento em seu mais recente livro, The Genius in All of Us (“O gênio em todos nós”, sem edição brasileira), lançado há pouco nos Estados Unidos.
Segundo Shenk, “o talento e a inteligência humana não são escassos como os combustíveis fósseis, mas potencialmente abundantes como a força do vento”. Ou seja, o potencial existe espalhado pelo mundo. O autor não dá garantia de nada: não é porque alguém quer ser o melhor escritor do mundo que vai conseguir. Mas pode ser que, cuidando direito de uma semente de talento, ela vire, sim, a árvore com que você sonha. Ou, citando o líder atual dos norte-americanos, especialistas na pesquisa pela busca do sucesso: “Yes, we can”.
É resultado
No início, era a crença nos dotes divinos: Deus teria agraciado determinadas pessoas com alguma habilidade incomum, o que explicaria a genialidade desses gênios. Depois veio a ciência e o tão famoso dom ganhou status genético, isto é, desconfiava-se (e as pesquisas nesse sentido não acabaram) que a excelência está marcada a ferro em nosso DNA. No fundo, a lógica é a mesma, a do acaso. E não haveria muita coisa que a gente pudesse fazer por esse raciocínio, a não ser torcer para ser um dos sortudos na loteria do talento.
Então surgiu Anders Ericsson. O psicólogo sueco dedica-se desde a década de 1980 a pesquisas que buscam a fonte de excelência de algumas figuras, estudando-as de todo possível ângulo: sua memória, cognição, persistência, sua relação com um mentor e assim por diante. Suas cobaias vieram de ocupações múltiplas: jogadores de golfe, enfermeiras, violinistas, programadores. Dentre eles estava Wolfgang Amadeus Mozart, que aos 5 anos de idade já compunha na Salzburg do século 18.
O pequeno Wolfgang nasceu não em um berço de ouro, mas em um forrado de muitas partituras: seu pai era músico, compositor e professor, e já vinha praticando a atividade de mestre com a filha mais velha. A infância do pequeno gênio começou com exposição precoce à música e um excelente professor, foi recheada de exercícios constantes e muitos incentivos familiares, além de uma imensa e inesgotável vontade de aprender. Tudo isso teria contribuído, diz Shenk, para o que Mozart se tornou.
Dos estudos de Ericsson com os ilustres veio a regra das 10 mil horas, popularizada pelo jornalista e escritor britânico Malcolm Gladwell em Fora de Série – Outliers. De acordo com os levantamentos a respeito da trajetória das pessoas de sucesso, igualar-se a eles exigiria uma dedicação de 10 mil horas, não apenas se exercitando, mas forçando-se a exercícios cada vez mais complexos. Isso dá uma média de três horas por dia, durante dez anos. Parece muito, e é, mas traz em si a ideia que é o alento de todo mundo: “O verdadeiro dom, no fim das contas, pertence virtualmente a todos nós: é a plasticidade do nosso cérebro e a capacidade extraordinária de resposta que existe em nosso corpo”.
A comparação que Shenk faz para concretizar essa ideia abstrata é inspirada na música: pense em uma mesa de som, daquelas cheias de botões. Ela seria o nosso DNA, e os botões são os genes que podem ser ligados e desligados, colocados para cima e para baixo a qualquer momento, seja por infl uência de um outro gene, seja por estímulo externo. Somos, então, definidos pela interação entre genética e o ambiente. O talento não é a causa do sucesso, mas o resultado dos nossos esforços para atingilo. Não é certo que todo mundo vai chegar lá, mas só dá para saber tentando. Agora não dá mais para usar a desculpa de que não nasceu mesmo para aquilo que você sonhou tanto fazer.
Só o que tinha qualidades
O heterônimo Álvaro de Campos, do português Fernando Pessoa, exprime em diferentes poemas sua fome de infinito, que por vezes vira uma frustração. Em “Tabacaria”, o eu-lírico confessa: “Serei sempre o que não nasceu para isso;/ Serei sempre só o que tinha qualidades”. Ainda que com menos poesia e mais rasteiros, os nossos desabafos por vezes se assemelham ao de Campos, nesse trecho de “Tabacaria”: eu sei que eu sei fazer, mas como eu vou saber se eu sei mesmo? Eu tenho aqui esse notável em potencial?
Gabriela Fróes passou um bom tempo cantando sozinha, em casa. Primeiro porque tinha vergonha de se apresentar, depois porque foi assim que a música esteve na sua vida: cresceu ouvindo seus pais tocarem diversos instrumentos só para a família ou alguns amigos; médicos por profi ssão, a música era só um hobby, a ser exercitado solitariamente. Até o ano retrasado não tinha tido uma confirmação sobre seu talento. “Alguns amigos já ouviram gravações minhas e eu sempre fui muito elogiada pela família. Mas é família: você pode ser péssimo e eles estarem mentindo. Como aquelas pessoas que vão ao American Idol: são muito ruins e vão embora chorando, em choque, porque a mãe sempre disse que eram bons.”
Em 2008, com 27 anos, mestrado e emprego de tradutora, viu-se sem um hobby para chamar de seu. Lembrou-se então da música. Já tinha tocado bateria na adolescência – Karen Carpenter em mente, uma baterista que cantava. Desta vez, pegou emprestado um violão do pai. Aprendeu algumas cifras para fazer seu próprio acompanhamento e entrou pela primeira vez numa escola de música, para estudar canto. Veio a primeira grande resposta: durante a aula, a professora pediu que alguém cantasse, para a turma avaliar aspectos positivos e negativos da voz. “Quando acabei a música que apresentei, ela não tinha nada de negativo para dizer. Ao invés disso, perguntou por que eu não estava começando a minha vida de cantora”, conta.
Neste ano, Gabriela recomeçou as aulas, depois de ter abandonado o curso por causa de alguns problemas que atrapalharam a continuação desse possível começo de carreira. Fez um teste para participar de um coral popular; ao fim, o regente apenas sorriu. “Ali estava minha confirmação. Ele disse que achava o coral popular pequeno para mim, e me convidou para fazer uma experiência com o coro de câmara, que é muito mais avançado.”
Conjunto completo
“A nossa personalidade é muito complexa e rica”, diz Maria Apparecida de Freitas, psicóloga da Colmeia, instituição voltada para orientação vocacional. “Você não esgota suas habilidades e talentos quando envereda por um caminho.” A decisão por uma profissão requer uma avaliação desses interesses. É tão angustiante por deixar tanta coisa para trás e também pelos outros fatores que precisam ser levados em conta na hora de marcar o X no formulário do vestibular: se vai dar para se sustentar, se existe mercado para a profissão, se é preciso agradar a família e os amigos...
Rodrigo T. sabia o que queria: exatas. Sabia mais: queria engenharia elétrica na Unicamp, curso que aborda engenharia acústica em sua grade. Mas não passou nesse vestibular e acabou seguindo pelo caminho da física médica, na USP de Ribeirão Preto. De certa forma, foi um alívio para seus pais: o objetivo por trás da primeira opção era se tornar produtor musical. “Eu descubro alguns artistas novos e pouco tempo depois eles estão bombando nas rádios. Mas eles mudam de características quando assinam com grandes gravadoras, e eu queria poder gravá-los para manter a música deles como é.” Os pais não queriam isso para Rodrigo.
“Eles diziam que ser músico não era aceitável”, conta. “Acho que eu nunca soube os motivos dessa aversão, mas era pelo meu futuro – não só o dinheiro, mas um conjunto todo.” O problema com a música vinha desde antes do vestibular. Quando ainda morava em Manaus com a família, tentou aprender violão sozinho e levava bronca da mãe, que saía do quarto em que ele estava treinando os acordes. Resolveu partir para gravações quando não se sentiu muito à vontade com o instrumento; conseguiu uma mesa de som e microfones e começou a convidar músicos que conhecia. A implicância aumentou, porque ele gastava tempo demais com a produção.
O interesse está latente: faz quatro anos que ele não se aventura nas gravações. “Coloquei uma meta na minha cabeça: suspender isso de música até eu me formar. Como eu não tenho renda, tenho que seguir as regras dos meus pais. Depois, vou ganhar o meu dinheiro e estudar música”, diz. No ano passado, descobriu que seu avô paterno tocava violão e gaita e fez uma surpresa para ele: levou seu violão e tocou algumas músicas. Seu pai comentou que fazia muito tempo que não via o avô sorrir da maneira que sorriu no dia; depois do acontecido, chegou a pedir que o filho tocasse mais – até então, situação inédita.
Amador ou profissional?
No caso do Rodrigo, a música parece transcender o status de mero hobby. Para Gabriela, isso ainda não está muito bem defi nido: ela perdeu o olhar apreciador para literatura, porque ler tornou-se trabalho, e teme que possa acontecer o mesmo se encarar uma carreira de cantora. Silvio Bock, diretor-geral do Nace, outra instituição voltada a ajudar os jovens na decisão pelas profi ssões, cita um motivo que poderia desestimular alguém a deixar de ser amador: não querer ter um chefe cobrando prazos e excelência.
Essa é a razão de Milton Blanco não ser pianista: “Faço questão de nunca receber nada para tocar. Eu não quero ser profissional porque eu quero tocar a hora que eu quiser e a música que eu quiser. Não quero ter nenhuma obrigação. Minha profissão é a medicina”, diz. Sobrinho do músico Billy Blanco, um dos nomes da bossa nova, Milton aprendeu a tocar piano ainda criança e nunca soube ler partitura – toca de ouvido. Já se apresentou em rádios, teatros e até gravou participações em CD. Como amador.
As preferências podem mudar ao longo do tempo, no entanto. A escolha da profi ssão é um momento de avaliação do que se viveu; acontece por volta dos 18 anos, que, para Bock, não é tarde nem cedo: é o que foi determinado pela nossa cultura. “Eu costumo brincar: qual seria a idade em que as pessoas estariam prontas para saber o que querem? Aos 75 anos? Não se pode comparar um indivíduo a uma fruta, que teria um momento ótimo para ser saboreada. O autoconhecimento é um processo que nunca acaba. Nós mudamos o tempo todo, alteramos nossos interesses, perdemos habilidades e adquirimos outras”, diz.
Então nada mais natural que a gente mudar de ideia, certo? Sim, mas nem sempre tão fácil. Maria Apparecida, que trabalha com um programa de “Reorientação de carreira e vida” na Colmeia, está acostumada a lidar com isso: “Muitas pessoas têm potencialidades que ficam clamando para serem desenvolvidas, e sentem uma pressão interna, uma espécie de vazio”. O grande problema, ela diz, é que em geral as pessoas já estão com suas vidas em processo. E aí entram outros fatores na possível resolução, como apoio familiar e sustento financeiro.
Maturidade adentro
Chega um momento em que é preciso decidir, segundo Elidio Sanna, ator da Companhia Barbixas de Humor, que se apresenta com espetáculos de improvisação pelo Brasil. “A hora da decisão é muito difícil, porque o trabalho antigo te sustenta, e você não sabe o que vai ser do novo. Tem que apostar com a expectativa de que dê certo.” Por trabalho antigo ele quer dizer aulas de física e matemática particulares e para pessoas estudando para concurso público; ele combinava esse ganha-pão até 2007 com o curso de Física na Universidade de São Paulo e algumas apresentações teatrais com os amigos Anderson e Daniel.
Naquele ano, depois de um curso técnico de artes cênicas, decidiu dar exclusividade ao palco. “Eu não juntei grana antes, fui vivendo e pedindo dinheiro para um e outro, falando que ia pagar depois. Foi difícil no começo. Aí foi melhorando e hoje está bom.” Bota bom nisso: o espetáculo Improváveis do grupo tem os ingressos esgotados com antecedência e eles estrelaram um programa de improviso na Band nos primeiros meses do ano.
Elidio tem 25 anos, e mudou de vida com 22, a mesma idade que Rodrigo vai ter quando voltar para a música, se mantiver sua meta. São jovens, sim, mas isso não quer dizer nada: nossas habilidades são maleáveis e moldáveis maturidade adentro, diz Shenk. Lembra das 10 mil horas? Não há tempo a perder.
O autor indica alguns princípios básicos para os ambiciosos. Entre eles, que é preciso encontrar sua motivação (seja ela inspiração religiosa ou até mesmo aquele arrependimento de não ter realizado antes seu sonho), ser seu crítico mais severo, saber quais são suas limitações, mas jamais se deixar abalar por elas. Também diz que se preste atenção no lado negro da força: não deixe que os fracassos virem amargura, mas faça deles oportunidades. Também é importante ter um herói – alguém que o inspire não só pelo sucesso, mas também pelo esforço que levou para atingi-lo – e um mentor, que pode criticar e também estimular sempre. Por fim, uma dica que não veio do autor, mas que talvez devesse ser considerada: nos momentos de tempestade, preste atenção no vento, sempre abundante. Sim, nós podemos.
Faz algum sentido?
A gente só é capaz de compreender o significado da vida quando olha a existência sob outra perspectiva
Texto Liane Alves
Depois de 7,5 milhões de anos de cálculos, o ultracomputador desenvolvido exclusivamente por uma raça de seres estelares para responder qual é “o sentido da vida, do universo e de tudo o mais” finalmente dá sua resposta. Anunciada “com majestade e calma infinitas”, o Pensador Profundo – esse é o nome do computador, de acordo com o Guia do Mochileiro das Galáxias, escrito por Douglas Adams – fornece a chave que irá desvendar o principal enigma do cosmos. E a resposta dele para o sentido da vida é... 42. Isso mesmo, o número 42. O que suscita outras dezenas de milhões de perguntas, que podem ser resumidas numa só: “42 o quê?!?”
Esse é o problema. Para entender o sentido da vida – e, por enquanto, vamos admitir que ela tenha um –, é preciso compreender algo que não está diretamente contido na própria vida. Como o arco-íris, que não existe por si mesmo, mas que é apenas o resultado da interação entre nosso olho e a refração da luz nas gotículas de água, o significado da existência também nasce de uma parceria entre nós e aquilo que achamos que é a realidade. É uma atribuição ao que vivemos e experimentamos. Portanto, o número 42 como resposta, assim como a própria vida, pode não ter sentido nenhum. Somos nós que atribuímos, ou não, um significado para ele, com base no que vivenciamos e entendemos do mundo.
Por que será que precisamos tanto atribuir um valor especial para a vida? E quais os fatores que nos ajudariam a vivê-la mais plenamente? Bom, aí já dá para responder.
Quando comecei a refletir sobre esta reportagem, lembrei-me de Deus. Mais especificamente, das primeiras páginas do Gênesis. Depois de haver criado céus e terra, peixes, animais, florestas e o ser humano, Ele teve um momento de contemplação. Olhou para sua criação e viu que tudo aquilo era bom. Foi a primeira atribuição de sentido para a vida: a de que ela era simplesmente boa. Não importa se no pacote vieram dor de dente e uma vaga atrás da coluna na garagem do prédio. No geral, ela é boa e generosa. No particular, pode incluir problemas.
“Mesmo quando achamos que a vida não tem nenhum sentido, estamos atribuindo um sentido para ela: o de que a existência é absurda, caótica, sem significado ou coerência”, diz a psicóloga paulista Karen Jimenez. Bom, ela tem razão. Esse olhar já carrega um monte de sentidos, inclusive. Ao contrário de Deus contemplando sua criação, muitas pessoas acham que vida é ruim, injusta, desagradável e até negativa. E, para a maioria delas, essa apreciação é deprimente. “Ela pode levar a um desânimo total”, diz Karen.
Agora, sugere Karen, pergunte para uma pessoa que está vivendo uma grande paixão o que ela acha da vida. Ou a uma criança brincando num parquinho. Ela nem vai querer perder tempo em responder a essa questão, tão interessada que está em viver. “Quem acha que a existência não tem sentido é porque perdeu seu encantamento por ela. Está desapaixonado pela existência. E qualquer coisa que não nos apaixona automaticamente nos desinteressa.” Nessa condição, tudo fica cinzento, com cara de dia nublado. “Somos seres que precisam de significado, seja no trabalho, seja nos relacionamentos ou nos seus projetos.” O sentido ativa nossa emoção – como o nome diz, aquilo que nos move para a ação. “Ele nos devolve o prazer, o desejo de interagir, de criar”, diz Karen.
Um dos segredos, então, é se apaixonar novamente por ela, descobrir seu encanto. Esse estado de graça geralmente nasce de uma harmonia interior, essencialmente espiritual, que se traduz depois numa harmonia exterior. Como diz Sócrates, em Fedro, na sua pungente prece: “... ajudai-me a buscar a beleza interior e fazer com que as coisas exteriores se harmonizem com a beleza espiritual”. Para a maioria de nós, esse sentimento de plenitude surge quando sentimos que estamos realizando o propósito do que viemos fazer nessa vida, algo que é único e individual. Aí a existência se reveste de sentido e beleza. “Imagine que o único propósito da vida seja só sua felicidade – então a existência seria uma coisa cruel e sem sentido. Porém, seu intelecto e seu coração lhe dizem que o significado da vida é servir à força que o enviou o mundo. Então, quando isso acontece, a vida se torna uma alegria”, escreveu o russo Leon Tolstoi.
Por que será que funcionamos assim? Por que o absurdo e a falta de sentido da vida nos incomodariam tanto?
Uma teoria, por favor
Quando a vida viola nossa lógica e expectativa, quando ela foge daquilo que supomos que aconteceria, mergulhamos num sentimento que o filosófo dinarmarquês Soren Kierkegaard descreveu como uma inquietante “sensação do absurdo”. É algo tão desagradável, tão desorientador, que o cérebro imediatamente se prepara para desenvolver uma coerência para aquilo que nos tirou do chão. “Ficamos tão motivados em nos livrar dessa sensação que passamos a procurar significado e coerência em qualquer outro lugar”, diz Travis Proulx, pesquisador da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, envolvido com estudos sobre como o absurdo molda o cérebro humano. Em entrevista ao jornal The New York Times, ele diz que cérebro é programado para identificar padrões e predizer o que está para acontecer com base neles. Os padrões nos dão um sentido, algo muito útil desde que o ser humano desceu das árvores e se colocou em contato direto com leões e outros predadores. Enfim, somos treinados para antever que isso mais aquilo só pode dar naquilo. Agora, imagine o que acontece quando a vida diz o contrário? De certa forma, enlouquecemos.
Além disso, o cérebro é reacionário. Ele “gosta” de padrões, de algo que se repete e que lhe permite fazer previsões, pois funciona a partir delas. E são justamente as sequências previsíveis que permitem a leitura de um significado. “Quando os padrões se rompem (por exemplo, quando alguém tropeça em algo inesperado, como uma poltrona de plástico no meio de uma floresta), imediatamente o cérebro passa a tatear por algo que faça sentido”, diz o pesquisador. Ou seja, passa a formular hipóteses, um dos passatempos prediletos da humanidade. Não nos conformamos facilmente com algo sem explicação.
Porém, mesmo quando estamos confusos e desesperados, e quando a vida parece não ter significado algum, algo pode ocorrer. As enfermeiras francesas Rosette Poletti e Barbara Dobbs, no livro Dar Sentido à Vida, falam da importância dos acontecimentos inesperados que podem mudar radicalmente nosso olhar sobre a existência, para melhor. “Mesmo numa vida que está indo à deriva, quando uma pessoa não leva mais adiante nenhuma busca de sentido, não acredita mais em seu futuro, não espera mais nada e quando nada mais tem significado para ela, sempre existe a possibilidade de uma reviravolta inesperada, surpreendente e, às vezes, milagrosa”, afirmam elas, que, inclusive, acompanharam muitos desses casos. O que as autoras afirmam é que o inexplicável pode sempre acontecer e mudar completamente uma convicção, uma situação, um jeito de ser. Isto é, algo improvável pode ocorrer e ser capaz de nos dar novamente um sentido à vida. É sempre bom ter essa possibilidade em mente.
O andar do bêbado
O problema é que a existência também parece estar cheia de fatos aleatórios, não previsíveis e sem significado aparente. Essa falta de sentido é tão perturbadora que outro pesquisador, o físico Leonard Mlodinow, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, se dedicou a escrever um livro inteiramente sobre como o acaso atropela e muitas vezes determina nossas vidas. O título é ótimo: O Andar do Bêbado. Diz o autor que a vida pode ser tão previsível quanto os passos de alguém que bebeu muito depois de uma festa. Ou que eles podem até ter um sentido. Mas que pode demorar muito para a gente saber qual. A tarefa a que o físico se propõe é falar sobre as leis que regem o acaso aparente, devolvendo um sentido à vida ao sustentar que eles não são tão aleatórios, imprevisíveis e caóticos assim. Isto é, que eles têm uma causa.
Ele também reconhece que a falta de significado existencial pode mexer muito com nosso equilíbrio emocional. “De fato, a resposta humana à incerteza é tão complexa que, por vezes, distintas estruturas cerebrais chegam a conclusões diferentes e aparentemente lutam entre si para determinar qual delas dominará as demais”, diz Mlodinow. Ou seja, ficamos confusos num mar de suposições de probabilidades. E tendemos a nos guiar pelas estatísticas: se determinada coisa aconteceu quatro vezes, é bem provável que também acontecerá uma quinta. Ou, então, a seguir a intuição, que muitas vezes desdiz o senso comum. O físico desconfia dessas duas respostas. Ele acha que por trás da aleatoriedade funcionam outras regras, que pouco têm ver com a intuição ou o senso comum. E que conhecê-las nos ajuda a compreender a existência. “A capacidade de tomar decisões e fazer avaliações sábias diante da incerteza é uma habilidade rara. Porém, como qualquer habilidade, pode ser aperfeiçoada pela experiência”, diz ele.
O acaso não é por acaso
Uma das primeiras leis a se conhecerem, por exemplo, está baseada na Teoria dos Jogos, elaborada por um psicólogo, Daniel Kahneman, que, contra todas as probabilidades, acab ou ganhando o Nobel de Economia em 2002. Aconteceu algo extraordinário com ele. Indicado para dar apoio psicológico a professores de pilotos de caça israelenses pela Universidade Hebraica, ele logo imaginou ensinar aos instrutores de pilotos a estratégia de recompensar comportamentos positivos em vez de punir equívocos, prática que funciona muito bem com ratinhos de laboratório. Mas um de seus alunos-instrutores discordou veementemente. “Muitas vezes elogiei meus alunos por manobras bem executadas, e na vez seguinte os pilotos sempre se saíam pior. E já gritei com eles por manobras mal executadas, e eles melhoraram logo em seguida”, disse ele.
Essa reclamação espontânea foi o primeiro passo para o Prêmio Nobel de Kahneman. Em vez de impor suas ideias, ele foi atrás da razão por que acontecia isso – isto é, do sentido. E observou que estava diante de um fenômeno chamado de regressão à média. Descobriu que desempenhos extraordinários – tanto ruins quanto bons – eram pura questão de sorte ou azar, já que a tendência dos pilotos aprendizes era ter um desenvolvimento médio que evoluía lentamente. E que no dia seguinte após de um grande feito, ou um fracasso, a tendência era voltar à média. Por isso o instrutor tinha a impressão de que o elogio não funcionava, pois no dia seguinte o piloto voltava ao desempenho normal e não conseguia repetir seu feito. Também por isso é que ele pensava que a bronca dava certo – pois após uma barbeiragem a tendência do piloto era voltar à média e “melhorar”.
O que Leonard Mlodinow explica em seu livro são as diversas leis, segundo vários autores e cientistas, que agem com relação à aleatoriedade. Em outras palavras, o acaso existe, mas há muitas leis que o regem que desconhecemos. Em outras palavras, ele diz que o acaso não é caótico nem absurdo, mas que segue leis complexas que ainda não conseguimos desvendar. Isso complica um pouco as coisas, que não são tão simples e diretas quanto podemos imaginar e prever. “Sei que a vida parece ter sentido, mas não sei exatamente qual”, diz com sinceridade o administrador de empresas paulista Fabio Constantino Magalhães. “Acho que levaria muito tempo para compreendê-la e mais tempo ainda para poder manipulá-la”, afirma. Sabiamente, ele admite seus imprevistos e acasos e não se horroriza mais com eles. “Nunca vou conseguir controlá-los, mesmo”, diz. Prefere então levar a vida com senso de humor, acreditando num sentido maior favorável e generoso, mas não necessariamente explícito e identificável para nós. Em resumo, mesmo não dominando as leis que regem o acaso, e tomando decisões imperfeitas e fazendo muitas bobagens, é possível que a existência, ainda assim, esconda um sentido oculto. O filosófo alemão Arthur Schopenhauer dizia que, perto do fim da vida, temos a chance de olhar para trás e contemplá-la. Dessa maneira vamos perceber como cada evento, que se acreditava ser apenas uma nota isolada e sem relação com as outras, na verdade fazia parte de uma grande e bela sinfonia. Como todos aqueles que acham que a vida tem sentido, espero que ele tenha razão.
Do caos à prática
Sempre vai haver alguém para tentar explicar o significado da existência, mesmo afirmando que ela não tem sentido algum. Um dos maiores exemplos da ala dos que defendem o absurdo total da existência é o anárquico grupo de comediantes inglêses Monty Python. Nas primeiras cenas do filme O Sentido da Vida, realizado por eles, vemos um velho prédio que desliza por Manhattan, na verdade uma caravela repleta de piratas disfarçada. Os bucaneiros invadem a sala principal da Mais Grande (sic) Corporação das Américas enquanto Harry, um dos melhores executivos da empresa, explanava sobre o sentido da vida com base em dois conceitos fundamentais: o de que as pessoas não usam mais chapéus como antigamente e de que a alma só passa a existir depois de um longo processo de autoobservação. Executivos e piratas entram em luta, o narrador do filme pede desculpas por um início tão caótico, um prédio cai por cima do escritório-navio e a fita começa de novo. Para os integrantes do Monty Python, só o absurdo pode explicar o absurdo existencial.
Esse tema também é muito caro aos fi lósofos. E para um historiador da filosofia, o inglês Julian Baggini. Competente e hábil nas tiradas típicas do humor britânico, ele escreveu o livro Para Que Serve Tudo Isso?, em uma notável tentativa de explicar o que os filósofos já falaram sobre o sentido da vida. Que, para ele, como para seus compatriotas do Monty Python, também não tem signifi cado algum. Mesmo assim, é uma delícia acompanhar seu raciocínio. Ao fazer isso, Baggini parece uma dona de casa inglesa de meia-idade que entra num quarto desarrumado para tentar organizá-lo, enquanto resmunga: “Céus, esses filósofos deixaram isso aqui um caos! Olha que ba-gun-ça!” Posso imaginá-lo examinando Soren Kierkegaard como se fosse um vaso de Murano e dizendo: “Esse aqui eu vou colocar ali! Sartre com aquelas teorias existencialistas, vou pôr perto da entrada, para não atrapalhar depois, e Schopenhauer vai ficar melhor ali, ao lado da felicidade...” Assim Baggini vai espanando, trocando móveis de lugar, colocando fora o que não interessa. Quando a gente termina o livro, está tudo arrumadinho. Pode não ser do nosso gosto, mas numa coisa ele tem razão: é melhor pensar num quarto limpo.
Depois de afastar a possibilidade da existência de um universo com propósito e significado já no primeiro capítulo e, com isso, a negar a hipótese de Deus (não é preciso concordar com ele, por sinal), Baggini navega por mares interessantes e insuspeitados, levando em conta toda a história da filosofia. Pode-se discordar, mas ele dá uma excelente base de discussão e nos ensina a raciocinar. No fim, ele próprio reconhece: “Temos que sair e viver a vida, e não conseguiremos fazê-lo se estivermos pensando inutilmente ‘para que serve tudo isso’”. Ele reconhece que a filosofia serve para se raciocinar sobre a vida e que isso é legal – se não ocupar tempo demais.
Em vez de se perder em elucubrações, Baggini propõe algo bem mais prático: amar. “O amor dá sentido à vida mesmo que ela não tenha sentido ou propósito”, afirma. “O amor – em todas suas formas – é crucial para os seres humanos e uma das coisas que fazem com que valha a pena existir.” Com ele é mais fácil enfrentar a incerteza, a fragilidade e a imprevisibilidade da existência, diz Baggini. Num dos seus contos, outra vez o escritor russo Leon Tostoi dá as chaves para que a vida tenha sentido: priorizar o que está acontecendo a cada instante, considerar como a mais importante do mundo a pessoa que está a seu lado naquele momento e fazer tudo que estiver ao seu alcance para torná-la feliz.
Ou, como diz Robin S. Sharma no livro Descubra seu Destino, ouvir o chamado do seu propósito de vida, transformar as provações diárias em experiências recompensadoras e saber amar. Nas palavras de Baggini, degustar a vida e vivê-la com amor. Parece que pelo menos nisso dá para concordar com eles.
Auto-sabotagem
O que nos leva à auto-sabotagem? Alguns sinais de alerta podem nos ajudar a mudar antes de repetir o mesmo erro de novo, de novo...
texto Liane Alves
Zinédine Zidane estava a um passo de se tornar o maior jogador da Copa do Mundo de 2006. Ele era a força do time e o grande trunfo da França na temível final contra a Itália. A mídia estava pronta para consagrá-lo como o atacante número 1 do mundo e contratos publicitários milionários o aguardavam. E o que fez Zidane? Para estupor de quase 3 bilhões de espectadores, o jogador arremeteu seus chifres contra o peito do italiano Marco Materazzi depois de uma curta troca de impropérios. Sem mais nem menos. Foi expulso, a França perdeu e ele encerrou sua brilhante carreira. Em vez de fecho de ouro, jogou uma pá de cal.
Se esse fosse o problema só do Zidane, tudo bem. A questão era só dele e ponto final. Acontece que todos carregamos um Zidane em potencial dentro de nós. Aliás, não só um, mas um verdadeiro time deles, quicando, trocando passes, treinando chutes, sempre prontos a dar uma inesperada rasteira no que conseguimos com tanto esforço. A questão é que a maioria de nós não sabe como lidar com eles. Caímos na auto-sabotagem porque simplesmente não reconhecemos antecipadamente quando ela se apresenta diante dos nossos olhos. Se muda um pouco o cenário, se os personagens já não são os mesmos, é fatal: esquecemos como foi da última vez que nos estatelamos no chão. Só nos damos conta quando já é tarde demais. E marcamos um gol – só que contra.
Todo mundo tem uma boa história de auto-sabotagem para contar. Mas a gente só é capaz de falar delas quando está livre desse ciclo repetitivo de gols contra (sim, o autoboicote, além de incômodo, é repetitivo). Quem de nós, ao viver um relacionamento amoroso, lá no meio da história, já não bateu na testa e exclamou: “Ai, meu Deus, de novo!” E lá estamos nós a roer o queijinho de sempre na ratoeira. “Durante oito anos sofri porque sempre arrumava o mesmo tipo de namorado: rebelde, inteligente, criativo. Sabe aquele tipo de jeans, barba malfeita, meio desleixado e que declama poemas do Thomas Eliot no original?”, diz Ana Cláudia Oliveira, minha amiga do colégio que prefere que eu coloque um nome fictício para ela. Reconheço: Eliot no original é golpe baixo. Esperaria qualquer outra mulher me dizer que se interessava por homens desleixados e sedutores, mas ela? A primeira da classe, que sempre mantinha o material escolar escrupulosamente organizado e limpinho até o último dia do ano escolar? Não batia. “Meu problema não é me sentir atraída por esse gênero de homem. Eles são mesmo incrivelmente atraentes”, ela me explica. “A questão é que depois de um tempinho, eu queria que esse mesmo cara se tornasse fiel, não jogasse mais as roupas pelo chão e me ajudasse a pagar as contas”, diz ela, rindo. Agora sim, ali estava a Ana Cláudia que eu conhecia.
Bom, e que remédio ela adotou? “Adotei o mesmo princípio da homeopatia: a cura chega por meio do mesmo veneno que causou a doença, só que mais diluído. Comecei a relaxar mais, a deixar louça na pia, atrasar contas, a exercitar meu lado mais selvagem.” E o resultado? “Os bad boys desapareceram. Acho que ele estão sempre atrás de uma mãe, uma mulher responsável, organizada, provedora. E eu não me encaixava mais nesse papel.”
Para ela fez um bem enorme. Hoje Ana Cláudia já recuperou parte do seu lado certinho, é verdade, mas nem tanto. Está mais solta, menos meticulosa. E já atrai homens mais equilibrados – talvez porque ela mesma esteja mais em equilíbrio. O ciclo da auto-sabotagem rompeu-se. Exatamente quando ela reconheceu que ele existia e que a fazia sofrer. Por isso, é bom começar com a questão: “Quais são as atitudes e circunstâncias repetitivas que sempre me prejudicam?”
O fracasso no sucesso
A sabotagem a si mesmo é um sério problema não só em nosso universo pessoal mas também, é claro, na vida profissional. Nela, espera-se que as pessoas tenham sempre sucesso e realizem bem concretamente os objetivos a que se propõem. Como dizem os mineiros, não tem ui-ui-ui nem ai-ai-ai, as coisas têm de dar certo e pronto. O consultor de empresas Eduardo Farah, por exemplo, é sempre convidado para dar palestras sobre as leis que regem o sucesso material e pessoal para profissionais de várias áreas do mercado. Mas, assim como ele se refere ao que pode contribuir com o êxito na profissão, também fala das circunstâncias que podem induzir ao fracasso, como a auto-sabotagem. É Farah quem gosta de dar o exemplo de Zidane como um caso emblemático de boicote a si próprio. “Não vamos saber nunca o que o motivou a se comportar daquela maneira. Mas podemos tentar identificar em nós mesmos o que nos empurra nessa direção”, diz. “Para começar, é fundamental saber que temos um time interno que joga contra. Não temos só de nos preocupar com os rivais externos, mas principalmente com esse time interno solapador que todos carregamos em algumas áreas da vida.”
E o que fazer com esse pessoalzinho do contra, então? Uma das respostas é: começar a lidar com eles olho no olho. E questioná-los sobre o que querem cada vez que algo dá errado, prestar muita atenção nos fracassos recorrentes em nossa vida. A grande pergunta que devemos fazer aos nossos Zidaninhos é: “Por quê?”
Eterna repetição
Somos seres repetitivos. Metade da nossa vida – ou mesmo a vida inteira – tentamos confirmar e concretizar as crenças que adquirimos quando crianças, sobretudo no relacionamento com o pai ou a mãe. “O garoto cuja família sempre passava as férias numa cabana de Rainbow Lake cresce e insiste em levar a família para a mesma casinha em Rainbow Lake – às vezes para o desespero de sua família atual”, escreve o psicólogo americano Stanley Rosner no livro O Ciclo da Auto-sabotagem. Outros cozinham da mesma maneira que sua mãe cozinhava, frequentam o mesmo templo, adotam as mesmas diversões e, às vezes, até moram na mesma casa. “Para esses indivíduos, tanto na vida real quanto na íntima, não há espaço para a mudança, para a inovação, não há espaço sequer para a imaginação”, afirma Rosner.
Essas pessoas (ou seja, a maioria de nós) são ensinadas desde pequenas que a única maneira de serem amadas e aceitas é serem iguais a seus pais. Por isso, prezam tanto as crenças deles – porque, basicamente, precisam sentir-se consideradas e acolhidas. Ou seja, elas não são aceitas pelo que realmente são, mas pelo que seus pais querem que elas sejam. Esse desejo de repetir o exemplo dos pais para obter seu amor é o que algumas correntes da psicologia chamam de “identificação arcaica”. Já é ruim quando os filhos são pequenos, mas é pior ainda quando eles se tornam adultos e procuram cumprir o que era pedido pelos pais, sem escutar suas próprias preferências, atender suas reais potencialidades ou sequer olhar para o ambiente atual e constatar que essas exigências são descabidas.
Há uma gama enorme de emoções negativas associadas ao autoboicote. A culpa, por exemplo, vem em primeiro lugar, quase sempre de mãos dadas com o medo. Geralmente, a culpa nasce por se romper uma crença de infância. É preciso se deter sobre isso, ver se realmente tem sentido. O medo também pode também vir sozinho: grandes expectativas, por exemplo, podem gerar pânico. Se ele não for bem administrado, pode se tornar paralisante. Também chega o medo de perder lá na frente o que se conseguiu até esse momento ou de não levar adiante a realização com o mesmo sucesso. Enfim, de que a história, no fim das contas, não dê certo. E, como pode não dar certo no fim, a gente está sempre disposto a dar um empurrãozinho para não dar certo no começo, não é?
O mais saudável seria que, ao se conhecerem outros estilos de vida e comportamentos durante a vida, escolhêssemos o que mais tem a ver conosco. Sem culpa, sem medo. E, depois de uma análise mais racional e adulta da situação, tentar ignorar aquela voz insistente vinda lá da infância que diz: “Você não vai abandonar tudo o que a gente ensinou para você, vai?”
Trens e sabotagens
Porém, em algum momento da vida, as coisas podem começar mesmo a descarrilar. Aliás, a origem da palavra sabotagem tem mesmo a ver com trens e descarrilamentos. Segundo uma das versões da etimologia da palavra, os sabotadores franceses do século 19 retiravam os dormentes (em francês, sabots) que uniam os trilhos da via férrea para as locomotivas se desgovernarem e perderem o rumo. É mais ou menos o que acontece conosco quando nós mesmos retiramos os dormentes dos nossos trilhos sociais, isto é, daquilo que se espera de nós. Quando isso acontece, instaura-se um estado de enorme confusão e conflito internos. Podemos fazer algo para ter segurança e sermos aceitos pela família ou pela sociedade mas, no fundo, podemos querer algo bem diferente para nós. Como não sabemos ainda como vamos resolver a questão, um dos nossos recursos inconscientes é começar a nos sabotar, isto é, retirar, na clandestinidade, os dormentes dos trilhos que nos conduzem ao mesmo caminho. Seja porque queremos afirmar nossas crenças e desejos e inconscientemente boicotamos a vida que queremos rejeitar, seja porque começamos a nos sentir felizes e satisfeitos e nossas crenças não o permitem. É bom prestar atenção nisso: os “eus” sabotadores podem ser tanto nossos grandes amigos, quando apontam para algo que nos faz mal e que precisa mudar, quanto nossos piores inimigos, quando boicotam as ações que nos trazem autoafirmação, satisfação e felicidade.
Portanto, a auto-sabotagem nem sempre é ruim. Ela também pode ser positiva e nos alertar para algo que simplesmente não vai bem. Por exemplo, quando aceitamos fazer um trabalho por dinheiro sem questionarmos se é exatamente isso que queremos fazer na vida. O conflito que pode emergir a partir dessa opção é particularmente agudo no campo da criatividade. Mônica Figueira ganhava fortunas como redatora de publicidade numa agência de São Paulo. Mas estava infeliz. Sofria a cada manhã que tinha de trabalhar, a cada texto que tinha de escrever. “Meu chefe queria uma intensa produtividade para poder justificar meu salário. E eu andando a passos cada vez mais lentos, procrastinando o trabalho, me arrastando como uma lesma rumo a uma depressão”, afirma ela. “A certa altura, travei totalmente. Não conseguia escrever nem mais uma linha, meu cérebro se recusava a responder. De lento, passou a nulo. Ele não queria mais se vender. Era a sabotagem suprema, com se minha mente fosse uma criatura independente de mim que se recusasse a colaborar mais um segundo sequer com aquela dolorosa situação.” Bom, resumo da ópera: a agencia finalmente a demitiu. Hoje, feliz e solta na vida, ela ensaia os rumos de seu primeiro livro. E o cérebro dela, totalmente refeito da crise, colabora intensamente para isso.
Enfim, o ciclo da auto-sabotagem se instaura porque nosso inconsciente quer chamar atenção para as razões profundas que motivam nossas ações.
São sinais de algo que não está bem e que precisa mudar para sermos mais felizes ou, ao contrário, indícios que se está muito bem mas que uma parte de nós não permite que isso aconteça. É preciso estar atento para decodificar corretamente qual das duas vertentes desencadeia o processo.
Trens e sabotagens
Já em 1916, Freud assina um artigo com um título instigante: “Os que fracassam ao triunfar”. Ou seja, o pessoal que sofre e morre de medo quando a existência traz satisfação e que fica feliz da vida quando ela não dá certo. No texto, o criador da psicanálise vai direto ao ponto: por algumas razões complicadas, e ele disseca todas elas, alguns indivíduos têm problemas em usufruir plenamente a satisfação de um desejo. Conseguir realizálo só traz angústia e ansiedade a eles, porque essa concretização vai contra algumas de suas crenças primordiais, entre elas a de que podem ter o direito de sentir felicidade atendendo aos seus desejos. Essas pessoas pode ter nas mãos todas as condições para aproveitar a vida ao máximo, mas elas talvez prefiram não fazê-lo. É uma espécie de medo de ser feliz.
Por sua vez, o receio da satisfação traz um conflito. O monólogo interno desse embate poderia ser: “E se eu gostar? E se for feliz? E se der certo? Ai, que medo. Talvez aí eu tenha de mudar. Mas é tão bom fazer tudo da mesma maneira, tá tudo tão certinho, para que arriscar?” Uma parte de mim, é claro, quer realizar esse desejo. É a mais consciente, talvez a mais salutar, a que vê que as coisas não estão tão bem assim e que já há muito tempo precisavam ser mudadas. Outra metade de mim não quer, por culpa, covardia, raiva, desejo de vingança (contra os pais) ou acomodação. Essa parte é geralmente inconsciente e reprimida. Mas está lá. Inicia-se então um jogo de forças entre a parte consciente e inconsciente do ego, entre desejo e pressão social. Como em tudo, quem for mais forte ganha.
Pergunte sempre
Podemos descobrir o que está por trás da auto-sabotagem ao fazermos perguntas a nós mesmos, tentando detectar culpas, medos, raivas ou nos lembrando dos registros negativos de infância. Isso também pode ser feito por meio de terapia verbal, analítica, com ajuda de uma pessoa preparada para isso, como um psicólogo ou um psicanalista. Mas outro jeito de entrar em contato com esses conteúdos internos é por meio das terapias corporais. “É preciso estar atento aos alertas do corpo. A limitação do movimento, aquilo que restringe nossa expressão corporal ou a dor nos dão indicações preciosas do que acontece em nossa psique e, por extensão, em nossa vida”, diz a terapeuta Miriam Leiner, que trabalha com a conscientização corporal por meio do movimento. “O corpo não está desconectado de nossas atitudes. Se ele não está em equilíbrio, o que está à sua volta também não está”, diz ela.
Um exemplo simples: uma das clientes de Miriam tinha sua postura comprometida por causa de um grave ferimento no pé, feito ainda quando era adolescente. Esse ferimento trazia dolorosas lembranças para a moça, pois havia ocorrido em um acidente de automóvel em que seu irmão havia morrido. Quando reaprendeu a andar, logo depois do acidente, ela passou a colocar mais peso no lado oposto do corpo. Era uma maneira de não sentir a dor física do ferimento, mas também uma forma eficiente de evitar a dor emocional associada a ele, como a perda do irmão e a culpa imensa por ter sobrevivido. O maior peso de um lado do corpo provocou outras compensações corporais, que resultaram numa postura desequilibrada e torta. “A moça continuou o resto da vida a proteger o pé esquerdo. O ferimento físico foi recuperado, mas não o emocional”, afirma Miriam. Ao tentar encontrar de novo seu equilíbrio durante a terapia, e mexer na base do seu corpo – os seus pés –, a dor voltou, profunda e intensamente. Quando se lembrou novamente do acidente, a moça percebeu que não se sentia merecedora de estar viva. “Ela admitiu que se autosabotava toda vez que estava prestes a sentir-se bem-sucedida e satisfeita. Ela achava que não tinha direito de ser feliz.” Esse sentimento emergiu ao travar contato com a dor e a culpa registrada no seu corpo. “A autoconsciência do que fazia com ela mesma foi vital para o seu reequilíbrio psíquico, energético e corporal. E, ao longo do trabalho com o corpo, sua dor emocional pode, finalmente, cicatrizar.”
“O que meu corpo me diz?”, portanto, pode ser outra pergunta a indicar um caminho para a resolução do conflito. É mais uma boa pista para saber em que direção mudar.
Alguma coisa está fora da ordem
Alimentamos a ideia de que podemos controlar tudo em nossas vidas. Nada mais enganoso. E isso vale inclusive para aqueles que acreditam ter na mão as rédeas da situação. Afinal, será que existe destino?
Texto Liane Alves |
Clara Primo levou quase dois anos para elaborar sua tese de mestrado sobre os hábitos alimentares de algumas tribos amazônicas. Levantou os dados da região, leu toda a literatura existente a respeito do assunto, escolheu os lugares certos para visitar, entrou em contato com os líderes locais, negociou comida e hospedagem, calculou custos e, principalmente, escolheu um fotógrafo de fama nacional para registrar todo o percurso, parte fundamental de seu trabalho acadêmico. Tudo pronto e acertado, ela iniciou a contagem regressiva do mais importante projeto da sua vida.
No dia do embarque, o fotógrafo manda uma mensagem de texto para o seu celular: não seria possível para ele embarcar, pois estava com disenteria. "Apesar do pânico inicial, resolvi não desistir e ir em frente." Viajou sozinha com a disposição de encontrar outro profissional em Belém. Chegando lá, um não podia, outro já tinha compromisso e o terceiro não atendia ao rigor de qualidade exigido. Nessa altura, todos os seus compromissos agendados anteriormente já tinham ido para o espaço. Foi quando Clara encontrou a melhor fotógrafa da Amazônia, especialista em temas regionais e indígenas. Suas fotos eram deslumbrantes e seu sorriso, mais encorajador ainda. A partir daquele momento, o roteiro passou a seguir as indicações da fotógrafa familiarizada com o mato. Os entrevistados e lugares eram outros, e não havia garantia nenhuma de hospedagem ou alimentação. "Era como se tivesse entrado numa canoa e aceitasse seguir o curso de um rio tal como ele se apresentava." E tudo - incrivelmente - deu certo. "A Amazônia me ensinou a soltar as rédeas. E a acreditar que existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia", diz Clara.
Esta reportagem, portanto, é sobre o momento justo de soltar as rédeas - e a nossa doce ilusão de que podemos controlar tudo. Pois, como diz a piada, se um dia você quiser fazer Deus morrer de rir, é só contar a Ele sobre os seus planos.
Limpando o terreno
Vamos começar estabelecendo algumas diferenças que são fundamentais. Controle não é planejamento ou organização. Também não é perfeccionismo, ou ter responsabilidade e disciplina. Controlar de forma exacerbada significa se aferrar a tudo isso como garantia de que as coisas saiam exatamente do jeito que desejamos. Porque se não sair dessa maneira, ah, se não sair... A gente simplesmente enlouquece: morre de ódio por quem atravancou nosso caminho, inventa inimigos que nos perseguem e querem nos prejudicar a cada esquina e, pior ainda, se imagina como alguém traído pelo próprio universo. Querer controlar dessa maneira é pura e simplesmente obsessão.
Para o controlador contumaz, não há espaço para que as coisas se modifiquem e se arrumem à sua maneira. Nem lugar para a reflexibilidade diante da mudança repentina ou a criatividade para buscar novas soluções em vista dos cenários imprevistos que se apresentam. "Há uma rigidez intrínseca: o que não segue nossa cartilha está errado e não presta. Não conseguimos aceitar como adequado e até propício aquilo que não obedece ao que planejamos anteriormente", diz a psicoterapeuta Irene Cardotti
"O controle vivenciado dessa maneira, rígida, férrea, está baseado apenas e tão-somente no desejo de manipular pessoas e situações em nosso próprio benefício", avalia Irene. Quando fazemos isso "coisificamos" gente de carne e osso e as transformamos em meros objetos. "Elas passam a ser instrumentos que utilizamos para atingir nossos objetivos. E deixam de ter importância como seres humanos que são, com seus sentimentos, opiniões ou sensibilidade", diz a terapeuta. Quando o caso é muito grave, inclusive, uma pessoa pode chegar ao limite da psicopatia. "O psicopata olha a vida como um jogo de xadrez, e as pessoas, como peças. Tudo é muito frio, calculado. Ele não se importa em mentir, humilhar ou enganar para conseguir o que quer."
Eterna vigilância
A maioria de nós não chega a esse ponto. Quando o assunto é controle, ficamos no básico um, ou chegamos até o nível dois ou três, no máximo. Helena H., por exemplo, acredita ser uma pessoa controladora, mas só até certo ponto. Uma das maiores tradutoras-intérpretes de São Paulo, ela é sempre convidada para traduzir palestras de cientistas internacionais, grandes mestres religiosos e terapeutas. O problema é que ela não se contenta apenas em fazer o seu trabalho. "Ao traduzir, fico sempre de olho em que ainda não sentou na plateia e chamo sua atenção, observo quem chega atrasado e faz barulho, faço cara feia se está faltando água no copo do palestrante, me irrito publicamente se alguém está cochichando e atrapalhando a palestra... Enfim, não dou e não tenho nem um minutinho de sossego", diz. Conhecida em casa por apelidos como "generala" e "Fräulein Helena", numa alusão a uma imaginária governanta alemã que ela encarnaria, é constantemente convidada para dormir em hospitais como acompanhante dos doentes da família. "Fico atrás da enfermeira para ver se ela deu o remédio certo na hora certa, se a pessoa está bem acomodada na cama, se o sol está batendo em seus olhos ou se estão falando alto no corredor - se estiverem, saio e dou a maior bronca", conta. Se de um lado tudo isso é bom, de outro a mata de cansaço. E a razão é simples: o preço do controle é a eterna vigilância. E esse estado de atenção tenso e preocupado causa um enorme desgaste emocional. "É um estresse constante. Nada pode sair do que eu penso estar correto, e vigiar ou antever as variáveis que podem ocasionar problemas consome toda minha energia", ela reconhece. Uma vida assim engessada também pode ficar cinza e monótona, e se tornar um grande convite à depressão e ao desânimo.
E o que faz um controlador parar? "A consciência de que estou tentando manipular demais uma situação. E quem geralmente dá esse toque fundamental é o outro. É ele que me diz: ‘Helena, sua função aqui é só essa ou aquela’ ou ‘Helena, você está ultrapassando os limites’. Sozinha, por mim mesma, ainda é difícil perceber quando estou extrapolando", admite a intérprete.
Outra boa maneira de deter é enxergar nas atitudes de outra pessoa próxima o próprio jeito de ser e reagir. Enxergar as manias, o amor a detalhes, o perfeccionismo e a eterna tensão num outro controlador ajuda a nos conscientizar de nossas próprias características. Prestar atenção em nossos apelidos também ajuda. "Já trabalhei com uma chefe que era chamada de Clint, numa alusão aos duros e implacáveis personagens que Clint Eastwood interpretava nos anos 1970, e tive uma madrasta cujo carinhoso apelido de família era Hitler. Todos eles eram controladores de mão-cheia", afirma a gerente de produtos paulista Maria de Lurdes Sobral. A aparência física também dá pistas preciosas: músculos tensos e rígidos, peito projetado para a frente, maxilar travado ou corpo muito denso podem igualmente indicar sinais de um controlador contumaz, segundo a avaliação da terapeuta Irene Cardotti, que também é especialista em bioenergética. Porém, mesmo conseguindo identificar ou administrar nosso lado mais dominador, ainda não respondemos à pergunta principal dessa história: por que será que somos assim?
A base de tudo
Duas emoções básicas movem o comportamento humano: o medo da dor e o prazer. E elas também alicerçam o nosso desejo de controlar. "Queremos manipular por medo de que as coisas fujam do nosso controle e nos causem sofrimento. É medo da dor, insegurança. O que não percebemos é que esse desejo nos aflige tanto ou mais do que o sofrimento que teríamos se deixássemos as coisas tomarem seu próprio rumo", diz Irene Cardotti.
Isto é, o controle exacerbado pode estar ancorado no medo. Mas não só. Desde os primórdios da psicanálise, seu criador, Sigmund Freud, afirmava que o controle também tinha a ver com o prazer quase erótico em exercer poder. E alguém que domina e controla uma situação pode obter muita satisfação com isso. O poder também dá uma sensação de segurança, que distancia a pessoa do medo de experimentar dor.
A questão é que essa sensação que nos alivia se baseia numa formidável ilusão: a de que realmente conseguimos controlar a vida. Feliz ou infelizmente, porém, a existência se revela bem mais indomável e resistente do que podemos imaginar.
Fúria de titãs
O desejo de controlar a própria existência levanta muitas perguntas de caráter universal: será que existe destino? Como funciona a lei do carma? Tudo está predeterminado desde o início? Temos mão no jogo da vida ou ela já foi escrita nas estrelas?
O filme A Fúria dos Titãs, um clássico das sessões da tarde na televisão, traduz em imagens uma das possíveis respostas a essas perguntas. Em determinados momentos da fita, os deuses do Olimpo, que assistem de cima à trama que se trava lá embaixo na Terra, simplesmente dão sumiço, substituem ou mudam de lugar determinado personagem, como se se divertissem com um enorme jogo de xadrez. Ora ajudam o herói com suas benesses e presentes, ora o atrapalham com monstros e titãs. O princípio do jogo é aparentemente benévolo: tudo é feito para que ele possa aprender com os obstáculos e fazer seu caminho com o reconhecimento de que pouco pode fazer sem a ajuda divina. Isto é, mostra que as grandes questões existenciais que têm a ver com o desenvolvimento de sua consciência estão fora do seu controle. Ponto.
Provavelmente não dependemos de deuses barbudos que jogam xadrez no universo. Mas é possível que estejamos sob o jugo de forças e leis capazes de tirar o controle de nossas mãos, especialmente quando não as conhecemos direito. "Minha mãe sempre nos diz o quanto é inútil fazermos planos. Eu não concordo. Acredito que seja importante planejar a vida, se o fizermos de olhos bem abertos. Devemos identificar e agradecer a sorte que temos e reconhecer os eventos aleatórios que contribuem para o nosso sucesso", diz o professor e matemático norte-americano Leonard Mlodinow, que escreveu um livro, O Andar do Bêbado, onde analisa algumas das possíveis leis pouco conhecidas que atuam na nossa vida, como a da aleatoriedade. Ele diz, por exemplo, que o acaso tem um importantíssimo papel em nossa existência. E que é falta de bom senso querer eliminá-lo.
Se enrijecemos no controle, se engessamos a existência na maneira como achamos que as coisas devem acontecer, diminuímos as chances da aleatoriedade, ou o acaso, se manifestar - uma perda verdadeiramente lastimável, de acordo com Mlodinow. Algumas pessoas reconhecem isso intuitivamente. "Acho que o universo é bem mais criativo do que eu. Planejo, organizo, faço cálculos e previsões, mas, se observo uma mudança de rumo, não a descarto imediatamente. Primeiro vejo se o quadro geral pode se beneficiar com ela. O engraçado é que na maioria dos casos a interferência se revela positiva", afirma o analista de sistemas Celso Ayres. "Mesmo se considerarmos que a chance de esse imprevisto ou mudança ser favorável seja apenas de meio a meio, ainda assim teremos 50% de possibilidade de que essa interferência seja benéfica, o que é um índice bem alto. Um controlador exacerbado jamais admitiria isso."
Verdade. Outra lei que é a maior casca de banana em nossos desejos de manipulação é a polêmica Lei de Murphy. Pode anotar no seu caderninho: quando o controle é excessivo, o tiro sai pela culatra. Aqui cabe uma historinha conhecida no meio gastronômico paulista. Conta-se que um respeitado crítico de gastronomia foi visitar um sofisticado restaurante paulista para fazer sua avaliação anual e conferir as estrelas correspondentes ao estabelecimento. Ele pediu um risoto, uma das especialidades da casa, e ficou esperando - muuuito tempo. Finalmente o prato chegou, com o arroz quase cru. A verdade é que a cozinha ficou em pânico por causa da presença do jornalista e do excessivo controle de quem a comandava. Como conhecia o talentoso chef, o crítico o chamou à mesa e perguntou qual o motivo de tal desastre. Ele respondeu desconsolado: "Scusi, signore, fizemos de tudo, ma no final só saiu um risoto de crítico".
Pois é. Perdemos a sabedoria de que existe o momento de assumir responsabilidades, planejar, organizar e realizar. Mas que também pode haver outros para soltar as rédeas, relaxar, criar e aprender com o que se apresenta. E que é saudável ter essa possibilidade bem presente e viva nas nossas escolhas e decisões. Let it be, deixe acontecer. Pelo menos de vez em quando, claro.
LIVROS
I Ching, Alayde Mutzenbercher, Gryphus O Que É o Karma?, Paul Brunton, Pensamento Portões da Prática Budista, Chagdud Tulku Rinpoche, Makara
A crise existencial
Manual prático para assumir e enfrentar o problema que assola homens e mulheres de qualquer idade
Por Marcelo Jucá
Mão elevada e com o punho fechado para apoiar o queixo. Olhar profundo, distante, perdido... É muito fácil associar essa posição à de um filósofo vagando entre ideias, como O Pensador, a famosa escultura de Auguste Rodin. Mas, afinal, no que o solitário estaria pensando? Em como pagar o aluguel, dizer àquela bonita moça que a ama ou está próximo de um insight filosófico que o faria questionar o que raios ele estava fazendo parado ali? Estaria ele em crise existencial?
Pois é, o ato de questionar a vida pode trazer sentimentos ingratos e que põem na mesa dúvidas pertinentes (ou aquelas nem tanto) que nos fazem parar e prestar atenção em por que razão existimos. Penso, logo existo? Que nada! Penso, logo entro em crise. Afinal, quem nunca ficou angustiado com as dúvidas e mistérios da natureza humana?
As crises existenciais não têm hora, lugar ou uma razão específica para estourar. De uma forma geral, tudo pode ser motivo para ela chegar de mansinho e se apoderar dos nossos pensamentos: uma página em branco, odiar o emprego, não arranjar uma namorada bacana (ou até uma que nem seja tão bacana assim...), uma família estranha, a aparência fora do padrão – ou tudo isso ao mesmo tempo. Essas são castrações modernas suficientemente poderosas para desequilibrar qualquer cidadão. E os resultados delas podem variar entre choros parciais, choros constantes, depressão e até, nos casos extremados, suicídio.
“Mas como ninguém pensou em solucionar isso antes?”, pode se angustiar o leitor. O fato é que já se pensou, sim. Desde Sócrates, pelo menos. Tanto que o ato de filosofar surge, de certa forma, dessa premissa: a de observar, investigar e compreender toda a miscelânea de sentimentos que formam o Homem.
Evolução da espécie
Pensar e refletir a respeito de “o que é o amor”, “o que é a morte” e “por que eu não tenho um conversível”, entre tantas outras charadas, é uma prática que toca muita gente. Os questionamentos são naturais, fazem parte da nossa natureza, e a razão de nos perguntarmos é porque existe algo ali fazendo cócegas, causando certo incômodo... Só que de tanto refletir, algumas verdades vieram à tona. E saber lidar com elas foi essencial para a evolução da espécie. A coisa começou mesmo a ficar feia quando o Homem foi destituído do status de “o” ser superior do universo.
O primeiro a contribuir com essa questão foi Nicolau Copérnico, que jogou, digamos, o problema no ventilador quando provou que a Terra não era o centro do sistema solar. Em seguida, Charles Darwin nos apresentou a Teoria da Evolução, confirmando que nossas raízes nos ligavam, quem diria, aos primatas. E há pouco mais de um século Sigmund Freud desandou de vez o caldo ao descobrir o inconsciente e, com isso, afirmar que não somos exatamente donos do nosso nariz.
As três teorias acertaram em cheio o ego da sociedade. Com o espelho do Narciso arranhado, tomou-se consciência de que tudo poderia ser motivo de dúvida. Na insegurança e desorientação das massas, o capitalismo fez sua mágica. Além do coelho, tirou da cartola casas, carros, videogames, roupas e tudo o mais para nos desviar o foco das angústias. Porém, isso tudo não passa de uma forma de abstração, provoca o psicanalista Cláudio Cesar Montoto. Quando alguém fala que está em crise existencial, precisa descobrir qual o seu motivo. “Não há um sintoma nomeado como crise existencial, existem sim castrações de desejo no sujeito que o angustiam”, diz ele.
Por isso, muitas pessoas sentem dificuldade ao tentar definir a razão de estarem insatisfeitas com a vida. Como escreve o psicanalista J.D. Nasio no livro Um Psicanalista no Divã, os motivos de crise parecem ser muitos mas, no fim, possuem como denominador comum os distúrbios sexuais, os conflitos familiares e os problemas sociais no trabalho. Algumas pesquisas e generalizações só dão mais nós nessa questão com as ideias da “crise masculina dos 40 anos”, “a crise da meia-idade” e “a crise da mulher moderna com emprego”, entre tantas outras. “O importante é entender que a crise existencial é a defesa do sujeito contra seu próprio desejo”, diz Montoto.
Então, podemos entender que, se homens e mulheres possuem desejos diferentes, logo, as crises também se manifestam de raízes diferentes? Mas é claro! Não significa que todo homem vai entrar em crise na meiaidade, obviamente, mas que há consternações diferentes em cada gênero. Para Nasio, “a problemática da mulher é do querer, a problemática do homem é poder”. Com isso, desenvolve- se o conceito de que as angústias masculinas são relativas ao declínio de autoridade, da função paterna e toda virilidade investida. Ao passo que o mal-estar na mulher está mais ligado à questão do amor, do ciúme de possuir o parceiro somente para ela, medo da solidão e de ser traída.
Em resumo, entre solidão, aceitação sexual e problema familiar, a crise existencial nada mais é que um diálogo interno, sua autocrítica em comparação e relação a si mesmo e ao outro. Quem é o outro? Parentes, amigos, astros de TV e quem mais quiser entrar na roda. Por isso, constantemente nos questionamos “por que não tenho uma turma de amigos como a de Friends?”, “será que vou viver um amor como o de Brad Pitt e Angelina Jolie?” e “minha vida poderia ser tão repleta de aventuras como a do James Bond?”.
Eu sou o outro
Uma forma paralela de analisar a importância desse “outro” é quando ele fica oculto, à primeira vista, e o sujeito se compara a ele mesmo. Grosso modo, é uma forma de exemplificar uma das ideias de Jean-Paul Sartre. Tomado por muitos como um pensador negativo e pessimista, o filósofo é o representante maior do movimento conhecido como existencialismo, e ele faz sua contribuição – para o bem ou para o mal – quando diz que a existência precede a essência.
O estudioso de filosofia José Renato Salatiel retoma as teorias de Sartre para exemplificar nossas angústias: somos os únicos responsáveis por nossas escolhas na vida. Nascido rico ou pobre, alto ou magro, o que o sujeito vai fazer com isso, com essas características, é sua essência, e não é justificável atirar a carga para a natureza ou Deus. “Sartre joga o peso da responsabilidade para o próprio sujeito, e ele, sem ter para onde escapar e em quem botar a culpa de fracassos e projetos não realizados, naturalmente entra em crise”, afirma Salatiel. E defende que, ao chegar a determinada idade, é natural que “paremos para refletir em todas as nossas realizações e quais foram nossas escolhas”. Nessa retomada, encontram-se muitos desejos que ficaram de fora. Logo, a crise pode vir por consequência. Ele acredita que são essas desilusões que devem ser compreendidas e tratadas para se evitar – ou combater – a crise.
O doutor Freud, por sua vez, tinha uma outra forma de enxergar as crises: não acreditava na felicidade constante – imaginava, sim, que ela fosse como uma montanha-russa, cheia de altos e baixos, tudo regido pelo confronto do que ele nomeava como princípio do prazer e princípio da realidade. Logo, isso aponta para um universo onde todos os sujeitos passarão, uma hora ou outra, por processos de angústia e momentos de felicidade. Quando o momento feliz passa, sempre procuramos repetir aquela sensação. Como nem sempre é possível, a angústia se instaura e, quando não bem tolerada, a crise existencial dá as caras.
Contornar e sair dela exige paciência e tempo. Refletir, procurar o diálogo e compreender que cada escolha tem o lado positivo pode ser uma forma de relativizar as coisas e enxergar a crise sem as lentes do exagero. Afinal, aprender a dar valor a esses pequenos detalhes contribuem na tarefa de humanizar cada sujeito. “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis”, cravou Freud no célebre texto O Mal-estar na Civilização.
A todo momento somos bombardeados por informações e possibilidades de sucesso sem fim, que nem sempre conseguimos abraçar. Em algum momento, é natural cair na armadilha de se sentir incapaz. Essa constatação, na verdade, pode ser muito positiva. Ela leva o sujeito a repensar as coisas, amadurecer e buscar novas alternativas para a felicidade. Mas isso quando ele está disposto a enfrentar as mudanças que podem decorrer desses questionamentos, claro.
Vida menos ordinária
A arte e a busca pelo prazer podem ser formas mais positivas de contornar e compreender os problemas que nos deixam pensativos. Há quem pinte quadros, componha músicas ou mesmo descarregue suas frustrações no esporte para encontrar o equilíbrio sentimental.
“As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que assumiu a vida mental”, explica Freud. Woody Allen, Van Gogh, Clarice Lis pector, Ray Charles e Fernando Pessoa são alguns artistas que transferiram e sublimaram suas dores existenciais por meio da arte. Allen, por exemplo, conseguiu transferir para seus filmes suas neuroses e sentimentos e enfrentá-los de forma divertida e inteligente.
No filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, a cena final mostra seu personagem dirigindo um ensaio teatral que retrata o sucesso de um relacionamento amoroso, após aquele vivido por ele ao longo do filme ter fracassado. Com o fim do diálogo, eis que Allen se explica ao púbico: “O que você quer? É minha primeira peça. Sabe, você sempre tenta fazer tudo sair perfeito na arte, porque na vida real é mais difícil”.
Para o psicanalista Montoto, são dois os pontos importantes para superar uma crise. Um: saber reconhecê- la. Dois: enfrentá-la. Todo mundo passa por uma ou várias crises durante a existência. E, se não passou, ainda há de passar. Mas a única forma de fazer com que ela deixe de dominar nossos pensamentos é descobrir e compreender o que está por trás dela. É preciso reconhecer que nossas escolhas sempre acarretam perdas, dúvidas e senões. “Todos nós temos desejos reprimidos e precisamos enfrentar sem medo a castração”, diz ele. Só assim conseguimos aceitar os deslizes da vida e perceber os questionamentos que se instauram como uma pulga atrás da nossa orelha. Porque é assim mesmo: mal encontramos as respostas e nossa mente já trata de ir atrás de formular outras perguntas.
Folga mental
Perder o foco às vezes é importante. Precisamos disso para criar, inventar ou simplesmente viver bem
texto Roberta De Lucca |
Era um dia qualquer e o matemático foi tomar banho. Ao entrar na banheira, percebeu que o volume de seu corpo imerso movimentava um volume igual de água. Naquele momento ele não se conteve. Saiu da banheira, atravessou a porta em direção à rua e, completamente nu, gritou “Eureca! Eureca!” (“Descobri”, em grego). Foi desse jeito, íntimo e inesperado, que o grego Arquimedes (287-212 a.C.) resolveu um problema que o atormentava havia tempo: descobrir se a coroa encomendada pelo rei de Siracusa era totalmente de ouro ou se o artesão contratado havia misturado prata (metal mais barato) à joia. Essa história – contada pela primeira vez pelo arquiteto romano Vitrúvio cerca de 200 anos mais tarde, e que acabou se tornando lenda – mostra que a partir de observações simples Arquimedes teria desenvolvido parte de sua importante teoria sobre a lei do empuxo
Talvez ele nem estivesse pensando na coroa naquele momento. Quem sabe se preparava para participar de um banquete, ou estava simplesmente tomando um relaxante banho. O fato é que Arquimedes teve o impulso de observar o movimento da água na banheira – igual a um gato que fica “viajando” enquanto vê o líquido indo para lá e para cá em seu pote de água – e disso veio o insight para a solução do problema. Mesmo que não se saiba até que ponto essa história é verídica ou lenda urbana da Grécia antiga, ela revela que a mente despreocupada, divagante, é matériaprima para o pensamento, a existência e a evolução humana. Devanear, portanto, é importante para a vida.
Reunião de referências
Pode parecer exagero dizer que devemos “viajar na maionese” para viver, mas sem essa viagem não alargamos nossos horizontes para abraçar tudo o que pudermos alcançar. Claro que é possível viver e curtir a vida numa rotina estabelecida, sem muitos riscos e surpresas que podem nos “tirar do prumo”. Mas deixar-se levar pelos pensamentos e ideias aparentemente desencadeados é um convite a novidades. Ao nos desligarmos do racional, abrimos caminho para o devaneio, para os pensamentos livres que, de tão livres, podem lembrar um filme de Tim Burton. Quando divagamos estamos, mesmo que inconscientemente, coletando e arquivando uma série de referências que podem vir a ser usadas em breve ou no futuro, para resolver umproblema ou desenvolver um projeto.
“É como preparar uma refeição. Você vai buscar ingredientes em vários lugares para montar o prato”, afirma o professor Antonio Carlos Brolezzi, do Instituto de Matemática e Estatística da USP. A solução de um problema matemático, diz ele, é feita da reunião de diversas referências. Não importa quantas informações foram usadas para resolver o enunciado nem se a solução foi alcançada dentro ou fora dos padrões para aquela equação. O que vale é chegar à resposta, mesmo que para isso seja necessário um período de devaneio que pode levar centenas de anos. Centenas de anos, como assim?!? “O Teorema de Fermat demorou mais de 350 anos para ser resolvido e o matemático que o solucionou estudou-o por sete anos até chegar à solução”, afirma Brolezzi.
Nesse meio-tempo, provavelmente houve momentos em que o matemático distanciou-se do teorema para arejar a mente; quem sabe pensou em desistir. “Quando não acho a resolução, deixo o problema de lado por um período. E, quando volto, vejo as coisas com outros olhos”, diz o físico brasileiro Marcelo Gleiser, que leciona no Dartmouth College, nos Estados Unidos. Mesmo se afastando da questão a ser resolvida, é preciso conservar a meta de ter algo a solucionar, e assim pode-se deixar a imaginação agir, sem correr o risco de se perder na viagem. “A coisa largada, sem uma motivação, pode atrapalhar mais do que ajudar. Precisamos ter uma meta. E, aí, deixar rolar”, diz Gleiser.
Rede de conexões
Na publicidade, que é um universo viajante por natureza (afinal, os criadores são pagos para convencê- lo de que aquela geladeira do reclame é bem melhor que a que você já tem), o devaneio é o combustível para a criação. Mas não pense que, só porque você vê bichos de pelúcia vendendo carros na TV, os publicitários compartilharam o narguilé com a centopeia de Alice no País das Maravilhas. A viagem na maionese publicitária tem suas regras – e todas bem estabelecidas. O criativo de uma agência precisa dar vazão a uma série de pensamentos que podem ser desconexos para vender ou divulgar um produto. Por isso ele precisa, além de um repertório criativo e imaginativo, ter disciplina. “Acima de tudo é necessário organizar a mente para ‘voltar à Terra’ e desenvolver uma campanha”, afirma o publicitário Pedro Pletitsch, diretor de arte da agência GNOVA e professor da Miami Ad School/Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP), onde ensina publicitários a botarem os pés no chão após seus devaneios.
Ao pensar em como vender um produto ou ideia (o que em outras áreas equivale a fazer um relatório diferenciado, preparar uma apresentação pra lá de convincente, escrever um livro e desenhar um móvel...), é imprescindível apelar para a mente racional. Só assim se consegue criar uma conexão entre o lúdico e o real. “Dizem que ser criativo é criar conexões entre coisas que parecem ser desconexas. É o caso do físico Isaac Newton, que mostrou que a mesma força da gravidade fez a maçã cair na sua cabeça e faz a Lua girar em torno da Terra”, afirma Gleiser.
“O pensar resulta de várias articulações, e quando pensamos é como se estivéssemos nos retirando do mundo, mesmo que seja para pensar sobre o que é real”, diz a professora de filosofia da PUC-SP e terapeuta existencial Dulce Critelli. Precisamos nos desligar da realidade para pensar em qualquer coisa diferente, e temos que permanecer nela para concluir o pensar. Dulce ainda explica que o ser humano é incapaz de ficar no mesmo lugar, de se bastar com as mesmas coisas sempre. Daí ele devaneia, divaga e vai encontrando pistas que o levem a um estado além daquele em que está. “Vivemos pensando no que foi e no que será. O futuro está sempre em aberto e para refletir a respeito dele temos que dar vazão à fantasia. Tudo no mundo caminha para o que não está aqui.”
E assim, pensando no que pode vir a ser, ou melhor, viajando sobre o futuro, cientistas, criadores, intelectuais e gente comum vão delineando a evolução do pensar, da criação e da história. O que seria da medicina sem a penicilina, ou da aeronáutica sem o helicóptero, desenhado por Leonardo da Vinci ainda no século 15 e tornado realidade no século 20? Ao observar as anotações de Da Vinci, muitas delas podiam parecer uma grande viagem naquela época. Mas várias ideias dessa salada “leonardiana” resultaram em coisas reais – inclusive o automóvel.
Comprovação científica É comum as pessoas relacionarem as palavras devaneio, divagação e viagem a ideias desconexas, sem sentido e escapistas em relação à realidade. Mas isso é reflexo da imagem negativa que se construiu em cima do devaneio e da divagação. Freud tem sua parcela de culpa nisso, quando afirmou que sonhar acordado era algo infantil e neurótico – uma falha de disciplina mental. Alguns estudiosos que o seguiram acabaram por tachar crianças mais viajantes de desatentas e hiperativas, enquadrando muitas delas como portadoras do TDHA (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). “Claro que existem crianças com o transtorno, mas é importante cuidar para evitar a patologização da doença em todas as que saem do ‘normal’, segundo os conceitos sociais e da escola”, afirma André Meller Ordonez de Souza, da equipe pedagógica do Colégio Oswald de Andrade (SP).
O problema, diz ele, é que o mundo atual é moldado na produção, no ser multitarefa, e as crianças foram arrastadas junto com essa corrente – tanto que aos 7 anos já têm agendas lotadas como a de executivos. Hoje, o lema é: fazer, cumprir, apresentar. E tudo dentro de prazos determinados; não sobra muito tempo para viajar nas ideias e executar melhor ou de um jeito mais criativo, diferente. “O devaneio vai contra esse mundo de produção e o lúdico, seja do adulto ou da criança, é o único espaço disponível para se conhecer o mundo e a si próprio”, diz Souza.
O psiquiatra Fernando Milton de Almeida, do Núcleo de Estudos do Imaginário e da Memória da USP, concorda com a ideia de que há quem olhe torto para o devaneio porque ele atrapalha a produtividade desejada pelos moldes atuais. “Mas devanear é parte da condição humana. Mesmo que o conhecimento hoje seja acelerado e as pessoas ajam de maneira mais autômata, é fundamental devanear.” Com a mente livre para flanar, o ser humano exercita a imaginação e transita por outros lugares; recolhe material para criar, fica mais receptivo a insigths.
De tão importante, o devaneio está presente até mesmo no dia a dia de quem acha que não se deve perder tempo com pensamentos desnecessários e sonhos malucos. Um estudo realizado por psicólogos da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, apontou que passamos cerca de 30% do nosso tempo devaneando. Isso mesmo: todos nós viajamos na maionese em algum momento do dia. No experimento, enquanto liam romances como Razão e Sensibilidade e Guerra e Paz, os alunos pesquisados eram frequentemente indagados se estavam atentos ao livro ou se estavam com a cabeça em outro lugar. Diante das respostas, veio o veredito de que todo mundo divaga – é normal. “Eu creio que as conexões executivas do cérebro, que estão altamente comprometidas com o pensamento racional e lógico, também são ativadas no devaneio. Portanto, não considero o devaneio algo oposto ao pensamento racional”, afirma Jonathan Schooler, um dos coordenadores do estudo.
O pesquisador diz que é importante percebermos quando devaneamos e que caminho percorremos durante essa viagem. “O segredo é ficar atento aos processos mentais para captar se o devaneio afeta suas tarefas. Se não atrapalha enquanto você está dirigindo, prossiga. Mas se desvia o foco, fazendo com que você freie em cima do carro da frente, tente ter mais consciência do que acontece ao seu redor.” Segundo a pesquisa, a criatividade é maximizada quando as pessoas percebem que suas mentes estão devaneando. “Acho que devaneio sem foco não vai ajudar em nada nossa compreensão ou abertura a novas teorias. Em todo o processo criativo, seja na poesia, seja na matemática, é necessária também uma dose grande de disciplina mental. O ideal é um balanço, uma abertura para os dois lados. Existem muitos caminhos para se chegar ao alto da montanha, mas a montanha é a mesma”, diz Marcelo Gleiser, que afirma só “se sentir humano munido de duas qualidades: devaneio e pensamento lógico.”
A força do pensamento
O que é e para que serve, afinal, a neurolingüística
por Yuri Vasconcelos
Se você me permite, vou iniciar este texto sobre programação neurolingüística de uma maneira diferente. Antes de dar qualquer definição, dizer de onde veio e para que serve essa técnica de que tanta gente fala, proponho um exercício de mentalização. É assim: pense em alguém com quem você não se dá bem (como um vizinho ranzinza ou aquele colega de trabalho irritante). Agora, recorde-se da última vez que vocês se desentenderam. Faça um esforço e assista a essa cena de fora, como se fosse um filme. Note as reações de cada um. Tente perceber que recursos, como tolerância, paciência, confiança ou compreensão, teriam ajudado você a agir diferente naquela ocasião. Digamos que tenha faltado paciência. Tente então se recordar de outro momento em que você teve paciência de sobra. Lembrou? Então reviva esse momento como se ele estivesse acontecendo agora, sentindo a paciência (ou outro recurso que você escolheu) tomar conta de você. Transfira agora essa paciência de Jó para aquele outro você (aquele do filme, encrencado com o vizinho) e tente enxergar qual seria seu comportamento se você estivesse se sentindo assim, paciente, naquela ocasião. Aí vem a última etapa, que é pular para dentro do filme, reviver aquela situação difícil com seu vizinho, mas dessa vez agindo de maneira diferente e procurando sentir as diferenças provocadas em você e no outro por conta de sua mudança de postura. Pronto. Da próxima vez que encontrar essa pessoa, você poderá usar essa nova forma de comportamento e, possivelmente, as divergências entre vocês dois vão diminuir.
É o que diz a neurolingüística.
Escolhi começar apresentando uma técnica da programação neurolingüística (ou simplesmente PNL) porque é difícil explicar, em palavras, do que se trata. É que a PNL é vivencial, quer dizer, é mais fácil entender experimentando. "A PNL não é uma teoria, mas um método em que a pessoa primeiro vivencia, depois entende", diz a psicóloga e estudiosa de PNL Deborah Epelman. "Ela pode ser vista como uma ferramenta para melhorar a comunicação com as outras pessoas e consigo mesmo. E como um caminho para o autoconhecimento e a evolução." Outra definição comum é dizer que a PNL é uma espécie de software mental, que faz a ligação entre a linguagem e o comportamento, entendeu?
Talvez ajude se a gente destrinchar o termo programação neurolingüística. "Programação" diz respeito à capacidade que temos (segundo seus adeptos) de ajustar nosso pensamento para modificar comportamentos (foi o que propusemos no exercício acima). "Neuro" porque, obviamente, tudo que a gente faz é decidido e processado no cérebro. Já "lingüística" é o centro da teoria da PNL, porque, segundo seus adeptos, é na linguagem que se deve intervir para mudar nossos comportamentos. Por quê? Porque é aí, por meio da comunicação, verbal ou não-verbal, que nos relacionamos com o mundo, dizem eles. Trocando em miúdos, os adeptos da programação neurolingüística acreditam que, por intermédio da linguagem, podemos reprogramar a mente e modificar nosso comportamento para atingir nossos objetivos.
Como você já deve ter percebido, trata-se de uma técnica muito pragmática. Seus criadores, o matemático Richard Bandler e o lingüista John Grinder, ambos americanos, começaram procurando comportamentos semelhantes em pessoas consideradas vencedoras em suas áreas de atuação. Isso foi nos anos 70. "Eles viram que os principais fatores que levavam essas pessoas ao topo eram a capacidade de tomar decisões e, principalmente, a habilidade para se comunicar", afirma Gilberto Cury, presidente da Sociedade Brasileira de Programação Neurolingüística e um dos pioneiros do método no Brasil. Ou seja, o objetivo maior da técnica é aumentar a eficiência, o que pode ser uma qualidade e um defeito, ao mesmo tempo.
Qualidade porque pode ajudar a conquistar o que você quer. Mas, se você não sabe o que quer ou ainda não descobriu onde mora sua felicidade (e olha que tem muita gente nessa situação), os frutos da neurolingüística são bem mais modestos. Tudo isso para dizer o óbvio e evitar enganos: a neurolingüística não é um mapa da felicidade, não é a receita mágica para a auto-realização. Ela é, sim, uma ferramenta para alcançar objetivos claros. "A neurolingüística oferece às pessoas um conjunto de ferramentas para usar melhor o cérebro e atingir os resultados que ela deseja, seja no campo profissional, seja no familiar ou no afetivo", diz Mirella de Castro, presidente do Instituto Latino-Americano de Programação Neurolingüística, de São Paulo. A estudante Mairana Azevedo Crispin, de São Paulo, valeu-se dos ensinamentos da PNL para conseguir passar no vestibular. "Estudava bastante, mas na hora do exame eu ficava nervosa e não me saía bem. Os exercícios de PNL me ajudaram a controlar a ansiedade e organizar meus pensamentos", diz ela, que atualmente cursa medicina na Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.
Pense afirmativamente
Um dos exercícios mais importantes é pensar afirmativamente. Nesse processo, é fundamental fazer o uso correto da linguagem. Vamos, então, fazer outro exercício para tornar mais claro esse conceito. Leia as duas frases abaixo:
"Não pense em um avião cheio de macacos".
"Pense em um avião cheio de macacos".
Agora responda: ao final de cada uma, em que você pensou? Num avião cheio de macacos, certo? Mas por que, se na primeira frase a tarefa era justamente não pensar nele? Segundo a PNL, nossa psique está totalmente voltada para o positivo. Assim, quando damos comandos negativos a uma pessoa, estamos nos comunicando sem eficiência, diz ela. Quando dizemos a alguém "não se esqueça de trazer meu celular, que eu deixei na sua casa", e a pessoa esquece, ela não foi desobediente. Para a PNL, você é que se comunicou de forma inadequada. No exercício acima, se eu quisesse que você não pensasse em um avião cheio de macacos, deveria ter dito "pense em um avião cheio de elefantes" (ou cheio de qualquer outra coisa, menos macacos). Da mesma forma, haveria muito mais chances de o celular voltar à minha mão se eu dissesse: "Lembre-se de trazer meu celular".
Para a PNL, a palavra "não" é perigosa e importante. Ela tem que ser bem administrada e está sujeita a regras. No lugar de "não se esqueça de", diga "lembre-se de". Em vez de "não entre em pânico", prefira "fique calmo". E, no lugar de "não quero engordar", mentalize "quero emagrecer".
O poder está nas palavras, dizem os neurolingüistas. "Ao invés de dizer o que não quer, diga o que você sim quer", afirma Gilberto Cury. Pensar de maneira positiva, diz ele, melhora nossa performance e faz com que alcancemos nossos objetivos mais facilmente. Mas atenção: não basta falar positivo se, internamente, estamos sentindo outra coisa. Não adianta, por exemplo, ir a uma entrevista de emprego dizendo para si mesmo que vai dar tudo certo, se, lá dentro, você está consumido pela insegurança. "Essa é a diferença entre a PNL e a auto-ajuda. Não é simplesmente pensar positivo. Ela oferece as ferramentas para que a gente modifique o que sentimos e, a partir daí, os nossos comportamentos", afirma Deborah. Lembra do exemplo do vizinho ranheta? O foco do exercício era a emoção. Veja o caso da advogada paulista Renata Gomes dos Santos, que tinha fobia de dirigir. Era pegar no volante de um carro que ela achava que ia desmaiar. "Tratei-me com um psiquiatra e tomei antidepressivos, mas não deu resultado. Com a ajuda de uma terapia baseada nos pressupostos da PNL, consegui entrar em contato com meu inconsciente e descobrir os mecanismos que faziam com que eu tivesse medo de dirigir", diz ela, que hoje diz enfrentar até a hora do rush em São Paulo.
Se você se interessou pelos possíveis benefícios da PNL, é preciso alertá-lo: a PNL não é considerada oficialmente uma ciência. Assim, a formação e o exercício de seus profissionais não estão sujeitos à fiscalização de um órgão regulador. Para não entrar numa fria e buscar informações com uma pessoa despreparada (como ocorre com todas as atividades, na PNL também existem os bons e os maus profissionais), informe-se sobre o currículo do profissional - onde se formou, quantos cursos já deu etc. - e peça para ver seu diploma de master ou practioner - esses títulos, conferidos pela escola em que ele fez o curso, são essenciais para o exercício da prática profissional. Além disso, prefira os profissionais de PNL cujos cursos básicos de formação tenham, no mínimo, 90 horas de duração. Em menos tempo do que isso, ele dificilmente passará os conceitos e transmitirá informações de forma que você possa usar a PNL com bons resultados em sua vida.
Fale positivamente
para a pnl, a maneira correta de se comunicar e atingir os objetivos propostos é dizer o que queremos, ao invés do que não queremos. por isso...
em vez de dizer diga
Não pense em ......................................Pense em
Não esqueça de ....................................Lembre-se de
Não quero me atrasar ..............................Quero chegar no horário
Se beber álcool, não dirija .......................Se beber álcool, chame um táxi
Não entre em pânico ...............................Fique calmo
Nunca feche o cruzamento ..........................Deixe o cruzamento livre
Não quero engordar ................................Quero emagrecer
Não quero perder tempo ............................Quero aproveitar bem o tempo
Edição 97 - outubro de 2010 Descartes
 A razão
Com sua fé racional e metódica, o filósofo francês inaugurou a modernidade varrendo o entulho no terreno da mente
texto José Francisco Botelho |
Considerado por muitos o fundador da filosofia moderna, o francês René Descartes foi um dos mais charmosos heróis e um dos mais atacados vilões na história do pensamento. Matemático brilhante e cientista profundamente inspirado, ele legou à reflexão filosófica certo viés mecanicista que ainda não a abandonou de todo – por isso foi acusado de plantar uma semente de frieza no coração do pensamento ocidental. Contudo, foi esse amante dos números e das combinações geométricas quem produziu o sopro de vida mais revolucionário a enfunar as velas da filosofia desde os tempos de Aristóteles – e não é de espantar que sua jornada intelectual tenha dado frutos mistos. Paladino da razão, ele impôs a si mesmo uma missão demasiado formidável: encontrar um método unificado para a decifração dos múltiplos enigmas do universo, desde as profundezas da física até as alturas da teologia, passando pelos dramas da vida humana. Em sua busca impetuosa por conhecimento, Descartes estudou a trajetória dos astros, dissecou cadáveres, embrenhou-se em selvas algébricas, especulou sobre a natureza divina e tentou solucionar as misteriosas imbricações do corpo e da alma – aplicando a tudo a mesma fé racional e metódica.

Pensador de interesses infinitos, Descartes foi também um dos estilistas mais rematados e menos pedantes na literatura filosófica. Suas obras contêm voos narrativos de dar inveja a muitos ficcionistas – em vez de nos empurrar conclusões prontas, o autor dos clássicos Discurso do Método e Meditações Metafísicas preferiu narrar, passo a passo e com translúcida franqueza, os caminhos e descaminhos de suas reflexões. Ler Descartes é pensar junto com ele – e, mesmo quando discordamos de suas conclusões, é impossível não admirar a sinceridade e o esmero de seu relato. Nisso, ele simboliza o inverso daquela figura tão comum nos dias de hoje: a do especialista hermético, que jamais abandona a proteção e o conforto dos jargões. Espécie de romancista do pensamento abstrato, René Descartes quis dirigir-se de forma franca e compreensível a todos os seres dotados de razão e bom senso – e nisso ele triunfou com maestria poucas vezes igualada. Foi, acima de tudo, o filósofo da clareza.

Descartes
Filósofo, físico e matemático, René Descartes, o pensador que introduziu a dúvida na filosofia, nasceu na França em 1596 e morreu na gélida Estocolmo (Suécia) em 1650.
Cheio de opiniões
Descartes nasceu na região francesa de La Touraine em 1596, no seio de uma família abastada. Sua mãe morreu de tuberculose antes que o filho completasse 1 ano; o pai era um ocupadíssimo magistrado que passava a maior parte do ano longe de casa. Pálido, frágil, sempre assolado por tosses e febres, René teve uma infância solitária e hipocondríaca. Aos 8 anos, foi estudar como interno no célebre colégio jesuíta de La Flèche – lá, a agudeza de sua mente logo se tornou tão proverbial quanto sua delicadeza física. Os professores permitiam que ele ficasse na cama até o meiodia, e o pequeno Descartes aproveitava as manhãs para devorar livros atrás de livros, bem acomodado entre travesseiros e lençóis (sem dúvida, um método dos mais eficazes para aquisição de conhecimento). As tardes eram dedicadas ao esporte típico de um cavalheiro: a esgrima. Apesar das tribulações respiratórias, René tornou-se um espadachim de respeito e chegou mesmo a escrever um tratado sobre armas brancas. O gosto pela solidão, a indolência matinal e a dupla habilidade com palavras e com floretes foram traços que o acompanhariam pelo resto da vida.

Entre os doutos jesuítas, Descartes desfrutou os rigorosos benefícios de uma educação clássica: leu os gregos e os latinos, encantou-se bem cedo pela poesia e encontrou na matemática a paixão de sua vida. Ainda muito jovem, contudo, seu entusiasmo erudito deu lugar a um crescente escândalo intelectual. Transitando pelas obras dos grandes filósofos de diversas épocas, Descartes não encontrou soluções definitivas para os enigmas da alma e do universo, mas uma infindável e encarniçada batalha de opiniões: Aristóteles quase sempre discordava de Platão; ambos eram desprezados pelos céticos, que por sua vez caíam na zombaria dos cínicos; e os batalhões de escolásticos medievais – todos igualmente sábios e pios – sequer concordavam em qual seria a melhor forma de provar a existência de Deus... Anos mais tarde ele escreveria em um de seus trechos autobiográficos: “Considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens excelsos, havia sobre uma única e mesma matéria, eu reputava quase como falso tudo quanto era apenas verossímil... Pois nada se poderia imaginar de tão estranho e de tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito”.

Exasperado com tamanha algazarra, Descartes decidiu abandonar as querelas eruditas e buscar iluminação no “grande livro do mundo”. Em 1618, viajou aos Países Baixos e alistou-se no exército do príncipe de Orange, que combatia uma invasão espanhola (Descartes, que era católico sincero, combateu ao lado dos protestantes – mais uma interessante esquisitice na vida desse andarilho excêntrico). Mais tarde, serviu nas tropas do duque Maximiliano da Bavária, participando nos primeiros embates da Guerra dos Trinta Anos. Nessa época, a filosofia ainda era para ele mais uma inquietação que um ofício. Até que um dia, aos 23 anos, em meio a andanças militares, Descartes teve a revelação que mudou os rumos de sua vida. 

No inverno de 1619, as tropas do duque Maximiliano da Baviera estavam estacionadas na aldeia de Ulm, no sul da Alemanha. A neve tombava com abundância e ventos gélidos varriam o lugarejo. O exército inimigo estava bem longe e os soldados não tinham muito que fazer. Para escapar ao frio, Descartes passava a maior parte do tempo enfurnado em um quarto aquecido, aproveitando o ócio para meditar. Como sempre, atormentava- o a velha questão: por que haveria tanta discórdia entre os sábios? Qual seria o método correto para decifrar o universo? No dia 10 de novembro, a resposta subitamente surgiu, na forma de uma metáfora arquitetônica. Descartes imaginou, primeiramente, uma cidade construída ao sabor das gerações humanas, com prédios acumulando-se ao léu. Em seguida, pensou em uma cidade perfeitamente planejada por um único arquiteto, com ruas alinhadas em traçado impecável. Por fim, concluiu: “Não há tanta perfeição nas obras compostas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, os edifícios construídos por um só arquiteto são mais belos que aqueles que muitos tentaram reformar... E parece-me que as ideias que avolumaram pouco a pouco, compostas pelas opiniões de muitas pessoas, não se acham tão próximas da verdade quanto o simples raciocínio de um homem de bom senso”.
Autonomia mental
Ou seja: na busca pela verdade, as ponderações de um único indivíduo podem valer mais que todo o peso das tradições acumuladas. O que Descartes descobriu no aconchego da estufa, enquanto a neve caía lá fora, foi o valor absoluto da autonomia intelectual. Para pensar corretamente, é preciso antes abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres; é preciso colocar em cheque todos os pressupostos, todas as filiações, todos os medos, e valerse apenas daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão.

O dom de distinguir o falso do verdadeiro existe em todos os homens, argumenta Descartes – o problema é que a maioria deles utiliza esse instrumento de forma rasteira, contentando-se com verdades parciais ou incompletas, que foram herdadas e não conquistadas. Antes de construir seu próprio edifício filosófico, Descartes decidiu varrer o entulho no terreno da mente – e só poderia fazer isso atacando impiedosamente os alicerces de tudo aquilo em que acreditava. Para chegar à mínima das certezas, era preciso mergulhar de cabeça no oceano da dúvida. E eis aí um dos aparentes paradoxos que fazem de Descartes um dos personagens inesquecíveis na saga do pensamento mundial. Racionalista fervoroso, sedento de verdades absolutas, o eclético espadachim de La Touraine duelou a vida inteira contra a incerteza – mas acabou concluindo que só se derrota esse portentoso adversário com as armas que ele próprio nos fornece. Duvidar metodicamente de tudo, até que a mente depare com algum princípio inquestionável – essa é a essência da “dúvida cartesiana”, cerne do método racional, que o filósofo-matemático tratou de aplicar a todas as equações do universo.

Descartes descobriu que, para pensar corretamente, é preciso abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres e valer-se daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão

O primeiro alvo da dúvida cartesiana são nossas certezas mais imediatas – aquelas fornecidas pelos sentidos. Imerso em reflexão no calor da estufa bávara, Descartes se pergunta: será mesmo verdade que estou aqui, num quarto aquecido, com a neve a tombar copiosamente lá fora? Certamente, é isso que os sentidos afirmam – contudo, quando sonhamos, também acreditamos na realidade do sonho, e só ao acordar descobrimos que tudo foi ilusão... Para ilustrar o escopo radical de sua dúvida, Descartes elabora uma hipótese com delicioso sabor fantástico: imaginemos que o mundo seja governado por um espírito maligno; imaginemos que essa divindade embusteira tenha criado nossa mente com o único intuito de nos enganar; nesse caso, como poderíamos ter certeza quanto ao testemunho de nossos sentidos, ou mesmo quanto às verdades aparentemente óbvias da matemática? “Ora, quem me poderá assegurar que esse deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas?”, escreve o pensador nas Meditações Metafísicas. “E pode ocorrer mesmo que esse deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado”. Ou seja: tudo o que vemos, ouvimos, pensamos e calculamos pode não passar de uma fraude cósmica, e o conhecimento humano talvez seja apenas uma magnífica tirada de humor diabólico.

E é precisamente nesse ponto, quando a consistência do conhecimento está prestes a se dissolver em sonho ou em pesadelo, que Descartes efetua sua estocada magistral: nem mesmo o mais poderoso dos demônios, nem mesmo o mais astuto dos deuses poderia me enganar e me iludir se eu não existisse. Ainda que eu duvide de tudo, não posso duvidar de minha própria dúvida e, por conseguinte, de meu próprio pensamento. Da dúvida extrema, Descartes faz emergir sua primeira certeza, cunhada na frase mais famosa da filosofia: “Penso, logo existo”. O pensamento, e não a matéria, é a evidência de que existimos – sobre essa verdade dura como pedra, arduamente resgatada no naufrágio das falsas certezas, Descartes ergue o monumento reformado de sua filosofia. 

Após o período passado no exército, Descartes dedicou o resto da vida à reflexão. Exilou-se na Holanda, onde viveu totalmente sozinho, lendo, pensando, fazendo experimentos dos mais variados e relatando por escrito suas aventuras mentais. Por mais que buscasse a solidão, seus livros correram a Europa atraindo tanto discípulos quanto detratores – e o grande misantropo acabou vitimado por sua própria fama. Em 1649, a rainha Cristina da Dinamarca – que tinha suas veleidades intelectuais, como tantos monarcas da época – resolveu contratar Descartes como instrutor pessoal em assuntos filosóficos. Em uma carta, o pensador recusou educadamente o convite. Cristina insistiu, levemente ofendida. Com medo de incorrer na ira de uma soberana, Descartes acabou cedendo. Cristina exigiu três aulas por semana – todas às 5 da manhã. Por alguns meses, Descartes foi obrigado a acordar de madrugada, no inclemente inverno escandinavo – verdadeiro suplício para um dorminhoco hipocondríaco. Por causa dos caprichos de sua real pupila, o autor das Meditações Metafísicas foi fatalmente derrubado por uma pneumonia em 11 de fevereiro de 1650.

Mais que um método, mais que uma doutrina, ele nos deixou um símbolo. Seu intelecto ao mesmo tempo sereno e atribulado, oscilante entre o sonho e a realidade, sempre em busca de um inatingível graal filosófico, serviria nos séculos seguintes como um farol hipnótico para as mentes inquietas – e como eterno convite ou eterno desafio à coragem de pensar.
Edição 09 - setembro de 2006
A arte de varrer o chão
É possível alcançar a simplicidade no trabalho vivendo num mundo complicado e competitivo? Ouvimos especialistas de várias áreas e descobrimos que até o estresse pode ser usado a nosso favor
por Adriano Quadrado |
Em seu famoso livro Autobiografia de um Iogue, o mestre Yogananda descreve a primeira vez em que seu guru lhe concedeu a experiência do Samádhi, a consciência cósmica almejada pelos santos da Índia. Depois de surfar nos mares do deleite transcendental, Yogananda, emocionado, resolveu se ajoelhar aos pés de seu guru para agradecer a experiência, mas o mestre pediu que ele se levantasse imediatamente e varresse o chão. Escreve Yogananda: "Fui buscar a vassoura. O mestre, eu sabia, estava me ensinando o segredo da vida equilibrada. A alma deve alargar-se sobre os abismos cosmogônicos, enquanto o corpo executa seus deveres diários."
A mesma natureza de pensamentos pode ser encontrada aqui no Brasil, no Mosteiro Zen do Morro da Vargem, no Espírito Santo. Ali, o monge Daiju Bitti e seus discípulos usam o trabalho como parte da disciplina espiritual. "Trabalhar é colocar a meditação em ação. A iluminação que todo mundo busca só vai se revelar no cotidiano e o trabalho faz parte disso", afirma o mestre. "Manter o mosteiro limpo faz parte de nossa disciplina. O trabalho é um dos pilares da vida espiritual."
Essas são apenas duas de muitas histórias e mitos que descrevem a satisfação plena no trabalho, e todas elas parecem apontar para este mesmo caminho: enquanto nos dedicamos às nossas tarefas, podemos empreender, silenciosamente, uma transformação interior.
"O trabalho é nossa vida. Está equivocada a pessoa que só enxerga prazer depois que acaba o expediente", diz o consultor Ken O'Donnell, coordenador para a América do Sul da Brahma Kumaris, universidade espiritual de origem indiana que hoje tem mais de 4 mil centros no mundo.
Então, olhando bem, é tudo muito simples. Mas há uma diferença entre o tipo de dedicação de um iogue ou de um monge e o da maioria dos mortais. Sem dúvida, mais e mais buscamos nos espelhar nesses modelos, não vamos tão mal, mas quantos de nós conseguem realmente meditar enquanto trabalha? Como "alargar a alma sobre os abismos cosmogônicos" quando quem nos dá ordens não está exatamente interessado em nos ensinar o segredo da vida equilibrada? Ou se entendemos que nossos deveres são um tanto mais complexos que varrer o chão?
Porque o mundo hoje vive um momento inédito em relação ao trabalho. Não contávamos com tantas brechas de mobilidade social, não éramos tão senhores do nosso destino. Para o bem ou para o mal, tínhamos quem nos dissesse o que fazer e, em geral, podíamos fazê-lo mecanicamente - quem sabe até tirando proveito disso, criando alguma liberdade para a alma. Agora, mais que em qualquer outra época, temos liberdade de escolha, podendo definir os rumos de nossa vida profissional. Isso é lindo, mas cria problemas novos, para os quais talvez não estivéssemos bem preparados.
Peter Drucker, considerado o maior pensador sobre administração e gestão de tempo, alguém que raramente se engana a respeito de qualquer coisa, afirma que, no futuro, os historiadores descreverão nossa época como aquela em que, pela primeira vez, um grande número de pessoas pôde fazer escolhas. Assim, de um lado nos entusiasmamos com a possibilidade de escrever nossa própria lenda, mas de outro, empurrados pela avalanche de informações e demandas, nos angustiamos por não saber o que fazer ou que rumo seguir. Ou se estamos fazendo o que deve ser feito com as ferramentas certas, e no tempo certo. Mais ainda, se nossos esforços pela sobrevivência colaboram ou prejudicam o planeta e seus habitantes.
Como sair dessa? O que fazer com a liberdade de escolha? Onde está o tão desejado equilíbrio? Como se livrar do estresse - ou, ao menos, como conviver inteligentemente com ele? Fomos atrás de respostas para essas perguntas, na esperança de encontrar algumas pistas para o santo graal da simplicidade no trabalho. Das centenas de boas idéias, selecionamos as mais proveitosas.
1. Trabalho como missão
Quase todas as pessoas com quem conversei durante esta reportagem disseram que a regra número 1 para ser feliz no trabalho é fazer aquilo de que gosta e acredita ser importante. No livro A Negação da Morte, o antropólogo Ernest Becker escreve que todo ser humano precisa de um "projeto heróico", ou seja, um trabalho que lhe permita encontrar um sentido de missão naquilo que faz.
Os exemplos são importantes e histórias de sucesso são sem dúvida inspiradoras. A experiência pessoal, contudo, é intransferível. Como explica o consultor Pedro Mandelli, muita gente acha que não se realizou profissionalmente porque toma como exemplo casos excepcionais. "A ansiedade pelo sucesso é um complicador. As pessoas olham para os modelos de grande sucesso e não percebem patamares mais modestos que também podem ser altamente satisfatórios." De repente você já é feliz no trabalho e não sabe.
2. A parada estratégica
Um plano infalível para sabermos se estamos ou não escrevendo nossa própria história é a parada voluntária (se bem que a involuntária, nem sempre confortável, também pode ser útil). Reavaliar a rota longe da rotina é algo que está acontecendo com freqüência. "Ao contrário do que acontecia antes, as pessoas não se orgulham mais em dizer que trabalham 14 horas por dia", afirma a consultora Ana Maria Cadavez. "Muitos executivos hoje me dizem isso até com vergonha, prometendo arrumar tempo para a família e o lazer. As pessoas estão olhando para os lados e vendo colegas que tiveram crises de estresse ou infartos fulminantes."
O consultor em desenvolvimento humano Herbert Steinberg ficava angustiado em ver quanta gente atingia as metas profissionais mais elevadas, mas não tinha projeto próprio de vida. Um dia, o suicídio de uma querida amiga o fez considerar que ele próprio estava no barco dos sem-projeto.
Então ele largou tudo, deu um beijo na família e foi fazer o Caminho de Santiago (ele contou a história bem contada na edição 2 de vida simples). Durante esse sabático (é esse o nome oficial dessa parada estratégica), enquanto caminhava aqueles míticos 800 quilômetros, o consultor diz que pôde reavaliar toda sua vida, e que isso hoje lhe dá a firmeza necessária para não dar bola para o que é desimportante, nem atender a ritos sociais sem significado. "Coloco minha energia naquilo que vale a pena e, no trabalho, penso sempre em ajudar as pessoas a resolverem seus problemas. Meu objetivo profissional maior não é mais aumentar meu patrimônio."